Quase cinco quilos.
Um recorde na família Freitas.
Isso deveria ter aberto os olhos dos pais do garoto e mostrado o quanto ele era
especial. Mas certas coisas vêm com o tempo.
O pequeno Júlio era o oposto
do pai em tudo; grande, bonito, amável e com uma boa índole que já saltava aos
olhos antes dos cinco anos. Vou explicar como eu e muita gente, soubemos disso.
Primeiro posso falar da creche.
Júlio frequentava uma creche
municipal enquanto sua mãe trabalhava em casas de família como empregada
doméstica. Silvana não tinha com quem deixá-lo ela trabalhava, então ele ficava
sobre os cuidados do município, na tal creche. Por lá, o garoto gordo virou
chacota dos coleguinhas desde o primeiro dia — entendam que ele dava o dobro de
qualquer um deles, mas preferia apanhar a reagir. Mesmo com a professora
pedindo para que descontasse uns beliscões nos coleguinhas, Júlio, o gigante
gentil, apenas se desculpava.
Mais coisas estranhas
aconteciam com ele, como ter suas roupinhas embaralhadas com nós nas gavetas.
Ninguém nunca soube como tal coisa acontecia, mas não importava onde a roupinhas
lavadas eram colocadas, elas amanheciam com nós. Às vezes os “laços” apareciam
com as roupinhas ainda estendidas no varal. Seus pais não comentavam o fato com
estranhos, mas na família, da qual faço parte, eram comuns essas estórias do
Júlio. Também tinha seu esquadrão de amigos invisíveis que acertava quanto ia
chover — dava medo de verdade quando isso acontecia.
Por mais estranhos que esses
episódios possam parecer; algo muito mais inexplicável aconteceu com o Júlio
anos antes. Sua primeira “estranhice” veio quando tinha três anos. Acho que foi
a primeira vez que eu acreditei num milagre, ou quase...
Era almoço de natal e na
cozinha se ouviria tudo, menos uma criança chorando.
Panelas passando de um lado
pro outro, adultos enchendo a cara com cerveja, rojões pelo céu, cachorro
chorando no canto da cozinha... E o armário embaixo da pia, escancarado. Dentro dele tinha de tudo: Detergente,
sabão, facas, vidros, amoníaco, mas o que chamou a atenção do pequeno Júlio foi
algo parecido com papinha de neném: Ácido para limpar fogões; um vidro aberto.
Com a distração do pessoal,
ele só parou de comer a coisa quando sua garganta pegou fogo ameaçando fechar.
Demoraram bons cinco minutos de berros para alguém dar-lhe atenção. A boca do
menino estava em bolhas, toda ela. Os lábios inchados, respiração ofegante,
cuspe saindo pelos cantos da boca, olhos repletos de lágrimas, rosto vermelho. Depois
da confusão e de um esporro titânico em sua mãe, o pai o levou até o pronto
socorro municipal.
— O que aconteceu com ele? —
perguntou o médico quase gritando para suplantar os berros de dor da criança. O
pai sem muito jeito ou cultura, mostrou o frasquinho com papa ácida. O médico
cochichou algo para a enfermeira Nilse. Ela saiu em disparada.
— É grave? — perguntou o pai,
ainda estava meio tonto pela cervejada que precedeu o acidente.
— Seu filho pode morrer —
respondeu o médico, seco.
Como toda a classe de caras de
branco, Marcelo preferia dar a pior notícia possível a ter que explicar um
excesso de otimismo. Carlos, pai do garoto, caiu sentado com as mãos sobre os
olhos enquanto a enfermeira chegava com uma maca e tirava seu filho dos braços.
Sobre o pai...
Carlos um traste como marido,
como ser humano e até mesmo como homem, mas como pai era o melhor do mundo. Em
seu desespero, saiu dali pra casa e se trancou no quarto jurando para Deus que
iria junto com seu filho caso o levasse. Prometeu só sair do quarto quando o
garoto ficasse bom. Parte da família achou uma puta covardia isso...
A mãe, Silvana, foi quem
tratou de acompanhar o caso de perto. Por sorte era mais forte que o marido se
tratando do filho (e de um monte de outras coisas). Fez plantão no hospital e
recebeu todas as más notícias possíveis.
A primeira é que chegara tarde
demais ao hospital e não poderia ver o pequeno naquele dia. Depois disseram que
a queimadura tinha acabado com as cordas vocais dele (e exames atestam isso a
quem quiser ver). A queimadura química não tinha como ser neutralizada depois
do tempo que perderam em casa. Tentaram melhorar o efeito do ardor que fazia o
pequeno gritar, antes de levá-lo ao hospital. Explicando: Nunca dê agua para alguém com queimadura química por ingestão!
Nunca! E foi isso o que fizeram, a mãe e a avó, piorando seu quadro e
espalhando produto tóxico pelo estômago de Júlio..
Nada de prognóstico positivo
para a mamãe. Ou seu filho morreria de intoxicação, ou deixaria de falar ou
perderia a capacidade de se alimentar por vias normais. Silvana chorava. Quando
parava, rezava; depois chorava mais. O quadro não teve melhoria nenhuma por
dois dias. Estavam desenganados; família (que a essa altura já estava por
completo envolvida e isso me inclui) e o corpo médico. Foi na terceira noite
que todos tiveram certeza que o menino era especial. Como nas duas anteriores,
Silvana recebia orientações para passar a madrugada, que lhe fora permitida de
tanto insistir.
—... Doutor, só mais uma
pergunta. Ele me pede agua sem parar, posso dar pelo menos um golinho para ele?
— Silvana, sem alarmá-la mais
ainda, mas isso arriscaria a vida de seu filho, não tenho outro jeito de eu lhe
dizer isso.
— Tudo bem, mas o que eu faço?
— Molhe um pano e passe sobre
seus lábios; em hipótese nenhuma deixe que ele engula alguma água. Nenhuma
gota!
Silvana concordou e o médico
se foi, deixando-a sozinha com Júlio.
Por volta das três da manhã o
garoto acordou aos gritos. Passava a mão sobre a garganta com se ela estivesse
em brasas, parecia ter acabado de engolir a papa ácida. Rolava de dor tentando
se jogar da cama. Estava enlouquecido de dor.
— Júlio, pelo amor de Deus, não faça isso. Mamãe não pode fazer nada!
— Dói, mãe! Dói! Quero ága,
por favô!
— Meu amor, não posso. O
médico disse que água faz mal. Você vai ficar mais dodói ainda se beber água.
— Sede, mamã! Sede!
A gritaria já se estendia por
alguns minutos quando a porta do quarto se abriu. Entrou por ela uma enfermeira
loira... Bonita, segundo contou depois, Silvana.
— O que está acontecendo aqui?
— perguntou. — Que gritaria!
O rapazinho se acalmou ao
vê-la, ainda chorava, mas apenas alguns solucinhos.
— Ele quer água. Tá com muita
sede.
— Espere um instante, sim? —
disse a moça saindo para voltar em minutos.
Voltou trazendo um copo de
água com ela.
— Quê!? O que é isso? Não pode
dar água pra ele, o doutor proibiu!
— Falei com o Doutor Marcelo e
ele pediu para dar-lhe isso. É medicação, não água.
— Pra mim parece água suja.
— Bem, seu filho está
sofrendo, vai deixar que eu o ajude, ou não?
— Desculpe dona...
— Eulália, meu nome é Eulália.
Silvana se aproximou, percebeu
um perfume suave vindo dela, floral. Também era dona de uma expressão
extremamente tranquilizadora. Talvez por isso tenha confiado à vida de seu
filho a ela, daquela maneira.
— Tome; dê a agua a ele.
Apenas três goles, depois me devolva o copo.
— Não vai mesmo fazer mal?
— Sou uma enfermeira, não uma
maluca, Silvana — disse Eulália sorrindo e apertando os olhos azuis. Um azul
que faria representações de Cristo soarem mundanas.
O menino tomou e enquanto isso
a enfermeira se retirou do quarto.
Pareceu que o novo medicamento
funcionara bem com Júlio, que se acalmou e dormiu a noite toda. No outro dia,
logo pela manhã, Marcelo passou para dar uma olhada e medicar seu paciente mais
grave. Silvana parecia acabada depois de três dias dormindo em poltronas.
— Ele passou bem à noite?
— Passou sim, dormiu como um
anjinho.
— Vamos ver essa garganta, anjinho? — disse, usando o afastador de
línguas e iluminando a garganta do garoto.
— Humm...
Silvana achou estranho que
naquela manhã Júlio não perdesse o ar de tanto chorar ao ver o afastador de
línguas. Naquela manhã até o ar que ela respirava estava estranho, mais leve e
perfumado. Sentia o abraço quente da esperança no lugar do assopro frio da
morte à sua nuca.
— Que foi, doutor? — perguntou
depois do terceiro “Humm” de Marcelo.
— Não entendo... Não posso
estar tão errado. Espere um pouco.
— Alguma coisa errada? Com
ele?
— Espere um pouco, já volto e
falo com você.
Quando voltou, Marcelo trazia
os exames do garoto e a enfermeira do primeiro dia — Nilse — com ele. Era ela quem
acompanhava o garoto durante o dia. Marcelo olhava para os exames, depois para
a enfermeira, para Silvana... Quando olhava para Júlio, parecia ver um
extraterrestre.
— Pode me explicar o que está
acontecendo, doutor? Tá me matando de ansiedade, assim!
— Bem; é que...
— É quê...?!
— É que, eu não sei o que
aconteceu com seu filho de ontem pra hoje.
— Como assim? Ele tá pior? —
perguntou Silvana lembrando com algum remorso do copo de água que o garoto
tomou durante a noite.
— Não é isso, é... Ele está
noventa por cento, curado. Sinceramente; se tivesse dado um copo de vinagre
para seu filho teria irritado mais a garganta do que a vermelhidão que ele
apresenta hoje. Não tem nada mesmo
que você possa me contar?
— O médico é o senhor, doutor...
A melhora dele foi por causa do remédio de ontem, foi só ele tomar e passou bem
à noite e...
— Do que você está falando?
— Da água com remédio; que a enfermeira
da noite trouxe e pediu que desse a ele.
— Deu água pra ele? Meu Deus!
Podia tê-lo matado! E quem é essa enfermeira? — perguntou olhando raivoso para Nilse.
— Não olhe pra mim — disse ela,
dando de ombros.
— Qual o nome dessa
irresponsável? Ele estava proibido de tomar água, coloquei bem sinalizado no
prontuário dele. Proibido!
— Eulália — respondeu Silvana.
— O nome era Eulália. Era loira; de uns quarenta anos, com os olhos azuis mais
lindos que eu já vi e... Foi estranho, mas ela acalmou meu filho assim que
entrou no quarto, cheirava a flores.
Marcelo ruboresceu e saiu do
quarto sem dizer uma palavra. Apenas suspirou longa e profundamente.
— Pode me explicar o que está
acontecendo nesse hospital? — perguntou Silvana um pouco exaltada. Nilse aproximou-se
e tentou contar o que sabia.
— A mãe do doutor Marcelo
chamava-se Eulália e você acabou de descrevê-la. Ela já faleceu há muito anos,
trabalhou aqui nesse hospital boa parte da vida. Essa não é a primeira vez que
isso acontece. Às vezes, ela visita alguns pacientes e traz remédio a eles. O
doutor Marcelo fica triste e com saudades dela que nunca aparece pra ele, e prefere
não falar no assunto. Ele já brigou feio com outro paciente. Se foi dona
Eulália quem você viu, pode ficar tranquila que seu filho sairá daqui melhor do
que entrou.
E assim acabou sendo.
O garoto se recuperou
perfeitamente, embora uma aura de acontecimentos misteriosos acabasse por
cercá-lo vida afora. Sempre achei que o Júlio era bom demais pra esse mundo.
Fiquei feliz quando soube que mais gente
achava isso. Ser bom, afinal, não é ser bobo e esse garoto é prova disso. Hoje
Júlio está com vinte anos, é um cara saudável, gosta de umas cervejas e canta
em uma banda de rock.
Dizem que seu alcance vocal é
algo divino; inexplicável.
Eu realmente não duvido...
http://www.facebook.com/pages/Cesar-Bravo/167745786701987
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