Água fria, coração gelado


Micael era o garoto mais branco e mais loiro da sala, tanto que deram a ele o apelido de Salomé. Pelas suas costas usavam alcunhas piores, mas nada que o transtornasse.

Chegara à escola há dois meses e tudo o que aprendera foi a falar pouco e tomar seus lanches dentro da sala de aula — essa era a única maneira de manter seu uniforme livre das gotas de sangue. Micael era um doce de garoto, segundo a professora de literatura tão doce que o tratavam feito idiota. Fazer o quê? O mundo também precisa deles, dos idiotas.
Agora estava na aula de Educação Física tentando escapar seco da piscina. Evitou a proximidade da água de todas as maneiras possíveis, mas numa escola como a Jardim das Nações o medo da água era só mais um detalhe. Depois de tantas escapadas da disciplina coube assistir àquela última aula de natação para não ser reprovado por carga horária.
Assistir; esse foi o acordo feito com o professor, nada de entrar na água com assassinos mirins.
— Ei! Salomé; entra um pouco, tá boa a água — disse um dos garotos. O maior da turma chamado Reinaldo, Reis para seu bando.
— Valeu — disse Micael subindo mais um degrau das arquibancadas de cimento ao redor da piscina olímpica.
— Deixe-o em paz, senhor Reinaldo.
O professor... Um metro e meio e uma voz bem mais audaciosa que ele. Silvio, vestido em uma bermuda ridiculamente apertada, era um bom homem que perdia a virilidade dentro de quadras de escola. Diziam que ele fora jóquei quando mais jovem, agora era só mais um meia-foda frustrado que queimava cigarros e bebia café na sala dos professores.
Na água além de Reinaldo estavam Julinho, Estevão, os gêmeos e Duduco. Praticamente o esquadrão da morte da sexta série.
A animosidade entre eles e o resto da escola era grande, mas nada comparado à que Reis tinha por Micael.
Na sexta série C, também estudava a irmã de Reinaldo, Karina. Micael nunca fez nada que mostrasse a ela algum interesse romântico e ele provavelmente nunca o faria por argumentos que se recusava a comentar, mas isso não impediu Karina de endereçar-lhe cartinhas apaixonadas. Uma dessas caiu nas mãos de Reis que desde então dedicava seus dias a estragar a vida do garoto pálido.
Micael aprendeu depressa as regras do jogo e se manteve afastado.
Uma ou duas vezes o pegaram desprevenido e fizeram coisas como arrancar a cueca dele sem tirar sua calça ou obrigá-lo a lamber o tênis sujo de merda de Reis. Punição padrão.
Reis queria mais. Queria sangue e pânico nos olhos azuis de Micael.
O maior medo de Micael (segundo sua redação lida na aula de literatura) era nadar. Havia escapado da revanche de Reis deixando de usar o banheiro ou se esquivando dos recreios, mas naquela última aula do semestre a sorte mostrou seus dentes podres para Reis.
Depois dos seis bate-e-volta na piscina, o bando continuava reunido aos cochichos em um dos cantos. Micael os vigiava de soslaio lendo Tommy Knockers de Stephen King. Outro garoto se aproximou.
— Por que deixa eles te tratarem assim? — Era Ralf, só mais um garoto que fingia querer ajudar.
Micael fechou o livro e ergueu seus olhos magoados. Seus cabelos estavam bagunçados e formavam pequenos cachos; davam um jeito inocente a ele.
— E por que você deixa que eles me tratem assim?
Ralf olhou para a água calma da piscina.
— Já apanhei minha parte.
— Como se livrou das surras? — perguntou.
— Você apareceu — respondeu Ralf num sorriso discreto. Depois de um longo suspirar de Ralf, disse: — Então... Acho que não devia te contar, mas os caras estão aprontando alguma...
Micael tornou a fechar o livro e prestar atenção em Ralf.
— Ouvi por cima... O Duduco tava combinando alguma coisa com o Reis na aula de Educação Artística. Não ouvi direito, mas ouvi seu nome. Quando vi você aqui, perto da piscina... Eles vão te pegar.
— Que se dane — deu de ombros, Micael.
— Tá maluco? Eles vão arrancar seu saco, cara.
— Humm...; acha que ainda dá pra escapar?
— Se sair agora, acho que sim.
— Não dá... Eu perco o ano, cara. Preciso ficar aqui até o fim da aula.
Ouvindo disso Ralf apanhou suas coisas e foi para casa. Não queria se meter de novo com o bando que o encarava da água. Havia feito sua parte e ela não incluía apanhar no lugar de Micael.
Ele reabriu o livro e continuou sua leitura. Ouvia os garotos o provocando da água e sentia seu coração acelerar, mãos suadas. Mas como explicaria perder um ano? Diria que era um medroso? Que não conseguia resolver seus próprios problemas? Não... Não de onde vinha.
O relógio da quadra dava a ele mais dez minutos de angústia, de hipóteses sempre ruins como ser afogado ou ser obrigado por Reis a beber da privada como havia feito com outros caras da escola. Seu bando tinha uma longa ficha criminal limpa pela a grana de seus pais, imunidade diplomática, nada tão diferente do mundo dos adultos, apenas mais resumido. Na escola existiam apenas duas leis: bate e ri ou apanha e chora.
— Vem mergulhar, Salomé! Seu cu doce não vai derreter, não — disse Estevão. Os outros riram e vaiaram.


A continuação vocês encontrará na Antologia Solarium 3 da Multifoco, em breve o link!



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Não há Vagas


Jack era um cara que morava dentro de outro cara.
Era bom morar dentro do Herman. Como o próprio nome, Herman também era meio idiota. Mas era forte, e como caras fortes dificilmente se dão mal na vida Jack ficava confortável aspirando a fumaça do cigarro que ele fumava, tomando o álcool que sobrava, essas coisas que toda a segunda personalidade de alguém costuma fazer. Também dormia mais do que ficava acordado, vez ou outra assumia a transa e estapeava a bunda da mulher do Herman; assim tocava a vida. Jack não gostou muito quando Herman se casou, mas acabou aceitando. Sempre é bom ter uma bundinha dentro de casa e afinal traição existe para quê? Herman também tinha prós como um emprego que permitia muito tempo de ócio para Jack sacanear com suas memórias. O grandalhão trabalhava fazendo pedais de guitarra. Como todo bom vagabundo acomodado se empenhava pouco, mas ainda assim garantia seu sustento (e o de Jack). Quando a grana apertava deixava os pedais e ajudava algum amigo a dar uma pintura em casa ou amassar cimento.
Sua mulher era o oposto. Era sócia de uma clínica de estética. Não era do tipo que fazia calos nas mãos trabalhando, mas comparada a ele era praticamente um Henry Ford da cosmetologia. Eram felizes juntos, mas Jack andava colocando as asinhas de fora na vida de Herman, e ela (que precisaria de uma trena para tirar a medida da língua) explodia seu saco a cada discussão. Jack aconselhava Herman a enfiar a mão na cara da mulher e depois dar uma boa trepada no estilo “a vida como ela é”, mas a vida de Herman tinha muito mais de Bozo do que de Bukowski. Ele era um banana e tudo bem para o Jack desde que não atrapalhasse a sua estadia dentro dele — exatamente o que começava a acontecer.

Manhã de quinta:
— Herman, por favor, né? Olha só o chão da cozinha. Tá todo marcado com a sola de seu sapato nojento — reclamou Elaine.
De novo, pensou Jack.
— Quer que eu faça o quê? — perguntou Herman. Jack sentiu vontade de esbofetear a parte da cabeça que era de Herman, mas não quis arriscar um derrame. Cérebros pequenos sempre são um problema quando se trata de guardar duas ou mais pessoas...
— Tira o sapato né? Já não mandei?
Manda ela se fodê cara! Não deixa ela te tratar assim! Puta merda!
— Não vou fazer isso — disse Herman. Não seria um nipônico andando de meias pela casa. Jack dentro dele se sentiu todo vitorioso. Estava quase acessando um filminho de memória mais quente para perder umas horas vadiando. Mas Herman tirou o sapato (como sempre).
— Melhor assim — cacarejou Elaine. Jack teve cólicas de raiva.
Jack estava irritado há tanto tempo que nem sabia mais se queria permanecer nervoso dentro de Herman ou se anular para ter uma velhice tranquila. Garantido ou não dentro da cabeça oca do Herman, ele se estressava com a falta de testosterona do colega. Nem de troco errado (para menos) ele reclamava. Era uma moça no corpo de um troglodita. Já a moça da relação, Elaine, começava a ser um saco de gelo na cama. Herman não se importava, mas Jack? Ele ficava maluco. Tentou por semanas fazer com que o grandalhão fosse até um prostíbulo ou pegasse a irmã de seu melhor amigo que dava mole para ele. Herman parecia um capado. Jack achava que ele tinha algum outro problema sério além da falta de atitude. Perdera horas vasculhando aquela cabeça de merda atrás de um defeito e tudo o que encontrou foram esquilinhos, coelhinhos e outras coisas fofuchas. Herman nem parecia homem às vezes.
Uma das tentativas frustradas que Jack jamais esqueceria foi quando tentou convencê-lo a transar com sua cunhada. Um furacão de mulher. Jack achava que ela queria transar com Herman só para competir com a irmã e adorava a coisa toda. Atiçou-o como pode projetando suas piores insanidades dentro da mente de Herman. O que ele fez? Confessou-se na igreja.
Quinta-sem-sapatos era só mais um dia na vida de Jack e Herman onde Elaine estava de folga — o que significava que eles ralariam como uma escrava gostosa nas mãos da sinhaninha (sem direito a sexo e mordomias com o barão; claro).
— Amor? Lava essa louça para mim? Pelo menos pediu com jeito, pensou Jack.
— Claro — Herman pegando a buchinha. O outro se retirou de cena enquanto o esposo agradava a megera que nem sexo decente dava a ele. Jack calculava se ela estaria tendo um caso. Ficou excitado com isso e resolveu assumir a “parada” ali mesmo. Deixou a louça como estava e partiu pra cima. Elaine estava passando paninho pela casa, levantando mais sujeira do que tirava.
Rabão, pensou Jack enquanto Herman dormia em algum canto.
Com a psique mais fraca, ele não tinha consciência que dividia o cérebro com outro. Isso o levou para alguns psicólogos e a tentativas inúteis de diagnosticar seus apagões. Claro que não encontraram Jack lá dentro. A cabeça oca de Herman deixavam quilômetros onde podia se esconder.
Jack já chegou todo armadão roçando o rego da esposa de Herman.
— Sai Herman. Tô ocupada não tá vendo.
Jack putaço da vida pegou a mão de Elaine e meteu dentro de sua calça fazendo-a encontrar uma das poucas coisas que Herman tinha de bom: um cacete enorme e cheio de veias. Ela arrancou a mão com tudo arranhando o caralhaço do parceiro.
— Sua vaca — disse Jack. Mal viu quando ela armou o tapa, mas saiu de cena antes do disparo.
— Plaft!
Herman ficou até tonto com a explosão. Inclusive a expressão ficou tonta (mais tonta). Elaine encarava-o furiosa enquanto ele voltava a si.
— Que foi?
— Cafajeste!
— Que foi que eu fiz “Laine”?
Seus olhos fritavam os dele. Muito cômoda essa desculpa de “apagar” a toda hora, pensava ela. Ele já havia feito isso antes...
Como quando ele encheu a cara a caiu no meio da cozinha rasgando o queixo. Ou quando acertou o “buraco” premiado na hora do sexo sem que ela tivesse deixado. Ela até gostou, mas achou um completo absurdo ele nem pedir e chegar arrombando a seco. Se pedisse com jeitinho teria deixado do mesmo jeito.
Isso era outra coisa que Jack detestava no co-casamento com ela. Tudo tinha que ser extra-delicado. Como se Herman fosse uma bicha vestida de algodão e não um homem de quase dois metros com bíceps de lenhador. Até para responder que já tinha levado o lixo para fora ele precisava ser uma virgem delicada. Jack não gostava de vê-la tratando um homem assim, mas principalmente tratando uma “meia-moça” feito Herman. O grandalhão não sabia se defender de uma mulher e Elaine era praticamente uma gerente da gestapo. Não era a toa que quando Jack assumia o sexo dava umas pancadas nela. A safada adorava, mas ele exagerava. Elaine não entendia quando de repente a violência acabava e o babacão romântico do Herman voltava à cena, com a cara de tonto de sempre dizendo: “Apaguei” todo gozado nos pelos.
— Deixa prá lá Herman. — respondeu enquanto Herman que massageava o rosto vermelho com cinco dedos em auto-relevo.
Saiu confuso e sentou-se no sofá-igreja-intocável da sala para ler um livro. Livro de horror. Uma das únicas coisas que Jack e Herman tinham em comum: adoravam terror; filmes, livros, qualquer porcaria que esguichasse sangue. Liam agora: livros do mal — coletânea, uma edição especial com vários autores. Seis livros com capa de aço (é... aço mesmo!). Herman sabendo da implicância da esposa com o maldito sofá sentou-se quieto e meticulosamente cuidadoso evitando que seus pés encostassem no tecido sagrado. Jack relaxou junto e ocupou meio hemisfério partilhando da leitura. Estavam juntos afinal, o que era bem raro. E nesses momentos Jack adorava aquele monstro idiota. Adorar era pouco. Ele o idolatrava apesar de toda sua aparente covardia relacionada à Elaine. O grandalhão era um bom homem, um homem que sempre seria melhor que Jack.
Sua parte na relação “dual” era assumir quando alguém abusava de Herman. Como quando tentaram fazer na sua primeira briga de colégio (e primeiro apagão). Eram três contra um. Jack assumiu e arranjou logo um pedaço de madeira cheio de pregos esquecido pela rua. Deixou os três jogados no chão e Herman com a fama de garoto mal da escola.
Mas Jack sentia algo diferente em Herman de uns tempos para cá. Uma temperatura diferente da de sapo na água dele. Hoje estava mais forte e ele estava mais para um sapo no sal. Seus pensamentos estavam embaraçados. Nada da calma inicial de professor de mestrado que costumava coordenar tudo dentro dele. Estava tudo nebuloso e selvagem ali. Jack ignorou e imergiu na leitura. Elaine de novo deu o ar da graça concentrada em atrapalhar o marido.

*
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Essa noite comerei sua alma


I

"Quebrando a lei desde noventa e seis" foi o que ouviu de manhã antes de descontar um pouco do que recebeu no mundo. Zumbis do espaço, a única coisa decente a nascer na cidade cinza. Algo que um adolescente rejeitado gostaria. Rock and Roll.
Tito era seu apelido. O nome de batismo nem mesmo ele queria usar. E não tinha por que depois de ter se alimentado dos pais. Talvez o velho avô fosse um nobre motivo, mas ele não queria envergonhar mais ainda o pobre velho. Tito sentia fome, e uma fome tão atroz que só carne humana o saciava. Por um tempo.
Vivia embaixo dos viadutos à noite e hibernava durante o dia. Conhecia cada buraco sujo da cidade. E havia muitos deles. Muitos deles.
Ele era mais que algum tipo de monstro e quando olhava para o céu lembrava-se que nada o levaria até lá. Gostava do violento e do sórdido e toda carnificina era pouca para seu ávido apetite. Começou a matar quando as duas presas de seu pescoço apontaram. Foi quando teve que se abster da sociedade humana e procurar por carne no lixo. Experimentou sangue pela primeira vez com os absorventes de uma prima. Pareceu a ele um suco denso e delicioso; geleificado que ele gostaria de ter há todo momento. Logo ele a pegou e sugou-a até que esvaísse a última gota.
Seguindo a linha do trem é onde ele mora. Num buraco sujo onde se criam ratos para comer quando a polícia está em seu encalço. É quase um mutante, mas é de tal modo feio e horrendo que chega a ser sensacional. Tito é fruto de um pesadelo de sua mãe. Um tão terrível que chamou a atenção de Lúcifer para a jovem Maria. Sua mãe era lésbica, mas mantinha relações com seu pai para comprar craque. Quando ele nasceu comeu sua própria placenta. Só não comeu a própria mãe por precisar se alimentar de seus peitos. Ainda assim, arrancou os dois mamilos mutilando-a antes de completar um ano.
O tempo passou e suas presas cresceram. Maria o levou a um dentista para que fossem cerradas. O pequeno gritou como gritaria um anjo ao ter as asas cortadas. Depois voltou para casa, certo de que a mataria também.
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O Juiz


Uma criatura talvez.
Bem longe de ser humana é o que havia se tornado. Um andrógeno arfando medos e suplícios, chafurdando pecados e pregando o holocausto. Imerso em couro apertado e tecidos caros não havia um só defeito em seu belo corpo. Pálido e até onde a vista alcançava, glacial. A pele rigidamente polida era capaz de cobrir-lhe toda a devassidão se assim desejasse, mas frequentemente preferia mostrar o pior. Seu crânio todo tatuado com escrituras antigas era o mapa para o além-mundo, mas para que as letras se revelassem era preciso derrotá-lo em seus enigmas. O corpo permanecia coberto, albergando suas indiscrições hora por tecidos, hora por carne costurada de outros seres. O primeiro humano que o viu caminhar o chamou de “o Juiz” antes de morrer sob seus castigos. Certamente a ávida criatura servia a alguém, mas a força que o comandava habitava a incompreensão humana. A superfície da terra com seus homenzinhos é apenas parte de seu Buffet de seres a selecionar, para participarem de seu palco de execuções. Um tribunal além do inferno onde a justiça é questionável em todos os patamares.
O que realmente conta para o Juiz é tornar os homens incapazes. É demonstrar que são fracas vítimas de si mesmo. Dizem que ele próprio já havia sido um homem, outros dizem que nasceu de divindades extraterrenas que atingiram uma doentia perfeição, inclassificável. A maioria não sobrevive e apenas deixa de existir a seus caprichos num suspiro sibilante.
O Juiz pode rastejar como serpente, mas prefere andar como um homem. Por onde ele passa as flores murcham e as crianças choram. Seus olhos contêm um mundo de desilusões e sonhos partidos e sua existência é justificada pela dor que faz transbordar.  Tem olhos abertos para os crimes e se regozija com eles. Depois cobra o preço que todo prazer insano tem. Um negociante esperto e uma arma mortal. Pode parecer com seus pais às vezes. Ou com uma mãe embalando o filho para dormir e ao mesmo tempo um torturador nazista.
Isso porque o Juiz é maior que a lei. E contra ele nada se opõe.




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Infernal


Eu sou um cara do bem sempre que posso, mas quando alguém me sacaneia eu dou o troco. Foda-se a misericórdia e toda essa besteirada de centro espírita. Eu quero é sossego e diversão. A piada é que a noite em questão deveria ser assim: boa...
Saí com minha digníssima — que também não é flor que se cheire — para uma reunião com uns conhecidos. Eu, apesar de ser um filho da mãe às vezes, participo de umas entidades por aí que tentam ajudar caras mais fodidos que a gente só pra nos sentirmos por cima da carne seca. É isso mesmo. E esse o motivo de caras “finos” se reunirem fora da igreja. De ajudar mesmo, tem bem pouco, mas eles gostam passar por bonzinhos.
Bom, saí com a dona onça toda maquiada pra não fazer feio, rumo a Pindamonhangaba.
Que a cidade era tão maldita quanto o nome, eu já sabia, só não sabia, que as pessoas eram mais malditas que o nome da cidade. Meu humor, pra colaborar, estava pior que o de um cachorro na fila do sabão — logo cedo tive que ajudar minha sogra com uns lances... Coisa física, montagem de móveis, essas merdas que o sexo frágil não gosta de fazer (e o babaca aqui não sabe dizer não).
Acelerando meu carro mais fodido que a minha vida, tomei a estradinha velha pra Pinda.
Estrada terrível, cheia de curvas, com um presídio no meio e um monte de gente feia andando pelos acostamentos. Cara, se você um dia visitar o vale do Paraíba (onde têm muitos paraíbas), não deixe de conhecer a velha estradinha porca de Pinda. Antes, você vai passar por outro buraco chamado Taubaté. Buraco Rules por lá. Passe rápido para não ser contaminado pelo “mal senso” das pessoas, até Monteiro Lobato vazou de lá quando pode. Lugarzinho deprimente, pior que Pinbanagoiaba.
Minha única referencial era a porcaria de um mapa que outro cara chupou do Google e me mandou por e-mail. Claro que o Google inventou uma rota para não precisar dizer que desconhecia o tal endereço. Não contente em inventar a rota, ele inventou nomes de ruas! Cara, se eu pego o fiadaputa que fez o algoritmo do Google Maps mastigo os bagos dele com minha bota, e vai doer. Muito.
Já estava perdido na primeira meia hora em Pinda, mas como todo homem macho e besta, não pedi explicações para ninguém. Continuei queimando alguma gasolina e acelerando. Nessas alturas, a panela começou a esquentar dentro do carro: um Clio ferradaço e cheio de barulho. Podia ser pior, eu sei, mas não pra mim... Eu ando com os ricaços como contei... Mas na real? Sou tipo, um mascote deles, um zero a esquerda que os lembra de tudo o que não devem ser.
Tocava Creedance no rádio e a raiva era tanto que a voz do Fogerty parecia uma puta-gay dando a bunda. O carro cheirava a bunda também, cheirava bunda suada. E mofo. Eu não tenho grana pra mandar lavar o estofamento que já levou de suor pra baixo. Foi quando a minha Pixuruca estressada começou a ratear...
— Pô Dario, custava pegar referência?
— Eu peguei, amor — disse, fingindo paciência.
— Pegou nada.
— Claro que sim, é que o safado que me passou não deu muito detalhe.
— Liga pra ele...
— Nem fodendo, puta falta de consideração do cara passar o endereço errado, quero que ele se foda, não vou ligar e...
— Pode para de drama e pede ajuda no posto, então... — disse a voz da minha consciência (e companhia na cama nos últimos cinco anos).
Evidentemente, só para contrariá-la, parei numa pocilga que vendia lanches antes de encontrar um posto. Sentados, tinha um motoqueiro com olho maconhado e um véio com o dente amarelo de quem chupa cigarro em vez de fumar. Do lado de dentro uma mocinha com banha sobrando na pelves se perdia na nuvem de calabresa.
— Boa noite. — Eu disse mentindo. Minha noite estava uma bosta e eu não desejava que ficasse boa pra ninguém, queria mais é que algum soviético doido testasse uma bomba de quarenta anos em cima da gente. Nem ligaria de morrer perto dos três fedidos. O pior no trailer from hell dos lanches, provavelmente era eu...
Pra não dizer que ninguém respondeu meu cumprimento, o motoqueiro maconheiro deu uma baixada de queixo. Saquei o endereço escondendo que era do Google para não parecer mais idiota ainda e perguntei:
— Sabem onde fica a Avenida Geraldo Alckmin?
Foi como se eu tivesse pedido o endereço de satanás. Ficaram com aquela expressão de bêbado que perdeu a casa sem responder nada. Por fim o véio seco respondeu:
— Não tem nenhuma rua com esse nome.
— Guimarães Nobrega? — completei com a segunda referência de rua que eu tinha. Depois da mesma, o maconheiro fantasma disse “piorô, parça”.
Desestimulado e querendo rasgar meu próprio rabo já ia voltando pro carro. Foi quando a coisinha gorda cheirando calabresa me chamou.
— Deve ser a rua da fazenda do Alckmin...
— E ele tem fazenda aqui em Pinda? — perguntei. Achei que o cara ia pelo menos disfarçar que roubava.
— O bicho é cara de pau, rouba e aplica aqui mesmo.
— Sem novidade — eu disse, depois tornei a perguntar pelo endereço.
A mocinha com marcas de suor nos sovacos se esforçou tanto que eu cheguei a acreditar que ela dizia a verdade. Fez um mapinha e tudo, colocou referências, só faltou assinar, registrar firma e reconhecer no cartório. Eu agradeci e me despedi dos outros dois indigestos, com um sorriso que dizia: “Tá vendo? Uma gordinha fritando calabresa sabe mais que vocês”. Acho que eles perceberam, o véio deu uma cuspida no chão e o maconheiro nem respondeu. Cheguei vitorioso no carro deixando a onça mais calma.
Daria tudo certo.
Ledo engano...
Rodei mais quarenta minutos e tudo o que vi foi mato, gente feia e asfalto esburacado. Estávamos além da faixa de gaza, amigo. Naquela situação que todo homem bom dá o braço a torcer e liga pedindo ajuda pra outro. Mas quem disse que eu sou um homem bom?
— A gente tá perdido, Dario!
— Tá nada, daqui a pouco o nome da rua aparece.
— Daqui a pouco a gente chega em Campos do Jordão, pô!
— E daí? Cê não vive me enchendo o saco pra ir? A gente toma um vinhozinho, desviar das bostas dos cachorros das madames...
— Credo, que mau humor.
Ela calou a boca depois disso, tipo: “não vou dizer o quão babaca você é”. Melhor pra ela. Senão voltaria andando pra casa, sendo assediada pelo povo da areia que mora dentro da terra e sai à noite.
Falando nisso, saca aquele momento que você tem certeza que caiu num episódio do Além da Imaginação? Eu eu estava bem aí. Fogerty cantando Midnight Especial, casas ruindo ao lado da estrada, uma mulher gostosa me torrando a paciência com toda a razão e um carro que afogaria só pra me irritar. É, man... Eu estava fodido e a mercê do acaso.
— Para naquele posto ali, ó — disse a dona da minha coleira apontando para um posto de gasolina que vendia mijo com corante.
.
— Os caras não sabem nem que moram no estado de São Paulo, bebê... Olha o naipe dos elementos — argumentei, possivelmente com razão. Mas minha jaguatirica cruzou os braços daquele jeito que eu sei envolver perda de sexo. Liguei a seta miseravelmente puto e parei no tal posto.
— Boa noite — disse educadamente de novo. — Podem me ajudar?
Como ninguém disse nada, perguntei pela rua com o nome do governador que diz trabalhar pra caralho.
As duas caricaturas com macacão cinza eram um homem de uns sessenta anos com cara de sujo e um negro. O negro era bem negro mesmo, até bonito de ver. Mas era só na aparência mesmo que o desgraçado valeria alguma atenção. Quem me deu atenção primeiro foi o Zé Sujeira.
— Eu não conheço essa rua.
— Fica depois do prédio da antiga fábrica da Coca-Cola, uma mocinha falou pra mim lá atrás — eu disse.
Zé Sujeira olhou para o rapazinho negro que devolveu o olhar num risinho. Sei o que significa, é claro. Que eu era um idiota perdido e que o Zé Sujeira perdia tempo comigo.
— Não sei de Coca-Cola nenhuma — respondeu o Zé, com cara de poucos amigos. O rapazinho pareceu feliz de deixá-lo puto e assumiu a bucha (que era eu).
— Qual é o nome do bairro? —perguntou tentando ver meu papelzinho. Escondi o nome do Google que nessas ocasiões soaria provocação ao enfodidamento dos dois, e notei que não existia bairro ou coisa parecida no papel. Google filho de uma puta... Tinha o CEP, mas eu duvidava que os dois frentistas tivessem o mapa dos correios com eles.
— Deixa pra lá — desisti. Mas o Zé Sujeira ainda tinha uma última carta na manga.
— Ô Pedrosa?! Sabe onde fica a fazenda do Alckmin?
Devia ter sacado que o Pedrosa era outro enviado do azar. Ninguém que veste uma camisa do Sandy e Junior merece respeito. Dentro do carro, depois do embaçado do vidro, minha coisinha quente borbulhava de raiva. E eu do lado de fora. Resolvi poupar muita dor de cabeça e ouvir o Pedrosa.
— Humm, fica uns cinco quilômetros depois da Sabesp — ele disse. Quase chorei.
— O senhor sabe onde fica essa Joça?
— É só ir reto até o final dessa rua aqui — apontou —, depois vira a esquerda, vai até o final da rua de novo, direita, até o final da rua. Nisso você vai gastar uns vinte minutos, depois disso vai chegar na Sabesp. De lá tem “praca” pra Avenida Guimarães Nobrega.
— E essas ruas... Até o final... A rua vai acabar mesmo?
— Vai sim — respondeu o Pedrosa. Pensei ter visto os dois frentistas rindo, mas pode ser impressão minha. Depois de tanto estresse...
Tenho essa tensão com certos tipos. Minha mãe dizia que era excesso de sensibilidade isso de enxergar nas entrelinhas. Eu sentia a faca nas minhas costas disparadas pelos dois frentistas. Os caras estavam felizes da vida em ver alguém “lascado”. Talvez compensasse a vida de merda dos dois. Infelizmente tem muita gente que prefere a desgraça do outro ao seu sucesso. Detesto o tipo. Eu não tenho nada, mas também não tenho inveja de quem tem.
— E aí? Ensinaram? — perguntou Leticia, ligeiramente mais calma.
— Acho que sim, o último cara que tentou ajudar conhecia uma das ruas.
— Que bom, tô ficando com fome.
De novo no carro, em menos de trinta minutos, estávamos completamente perdidos e fora da área conhecida como cidade. E eu levando esculacho da Leticia. E ela ficava ainda mais brava quando estava com fome.
Era uma estrada longa, parecia que nunca acabaria. Nada de Sabesp ou de fim da rua. O desgraçado do Pedrosa nos mandou bem pra porta do inferno. A noite estava escura e dava pra ver bem pouco a olho nu. Agradeci pelos faróis do carro. A vegetação parecia mais seca nos últimos cinco quilômetros. O ponteiro da gasolina ainda estava no meio. Pelo menos isso, pensei. Não ficaríamos a pé.
— Estamos perdidos, Dario. E tudo porque o senhor não pegou o endereço direito...
— Eu peguei, porra! Confiei no cara, achei que o mínimo que ele faria era me passar o endereço certo.
— Você e seus amigos... Era melhor ter ficado em casa.
— Também acho, mas agora estamos fodidos porque a senhora não quis voltar pra casa quando eu pedi.
— Pra quê? Pra você ficar o resto da noite falando asneira por ter perdido a reunião? Eu não queria passar por isso, Dario, e você se conhece.
— Tá querendo dizer o quê?
— Que você não assume quando faz coisa errada, ia dar um jeito de me culpar e... Cuidado!
Puxar o freio de mão foi tudo o que deu pra fazer. Não consegui ver o que era, mas caso não tivesse acertado aquilo, a lataria do Clio lambeu seu corpo. O carro rodopiou com a gente dentro; perigosamente próximo às arvores e mourões da estrada. Uma nuvem de poeira cerrou o ar do lado de fora. Leticia estava com os olhos arregalados e eu sabia que se arrependia por ter discutido comigo e me distraído. Enquanto o carro rodava fiquei satisfeito em poder caceteá-la por isso depois. Logo paramos. Leticia pegou um saquinho de lixo e vomitou um pouco, não era boa sob estresse; nunca fora. Por sorte estava de barriga vazia ou o carro além de bunda mal lavada, cheiraria vômito.
— O que foi aquilo? — perguntou. Ainda tinha algo vomitado grudado no queixo. Eu avisei e ela limpou. Mesmo assim a partir daquele momento quem não queria sexo era eu. Que nojo...
— Não sei; algum animal?
— De pé? Só se fosse um canguru, Dario; e não estamos na Austrália.
A terra suspensa pelo carro não deixava que enxergássemos além de um ou dois metros. Dei partida e claro...
— Que foi?
— Não tá pegando.
— Dario, tira a gente daqui, tô com medo.
— Melhor ver o que era aquilo, pode ser que tenhamos atropelado... não sei... uma criança.
— Droga, Dario! — disse Leticia, impetuosa. Meteu a mão na maçaneta.
O relógio biológico de Leticia pedia um filho há cinco anos, então a possibilidade de fazer mal a uma criança a deixava fora de si. E a mim também, mesmo sendo um bastardo egoísta. Não disse, mas o que eu achei ter visto no meio de um cobertor não era uma criança. Olhos de crianças não brilham como olhos de cavalo.
— Peraí, eu vou até lá — eu disse e desci meio arrependido.
Um corpo envolvido num cobertor estava deitado logo à frente dos faróis. A poeira não me deixava ver se a coisa respirava ou não; achei que não.
— Ei? Tudo bem, aí? Me desculpe mas você apareceu do nada e...
Lentamente a figura se levantou. Media cerca de um metro e vinte e pude ver junto a uma porção de areia empapada num ponto de sua cabeça que algo úmido saía. Sangue.
Que merda, pensei.
— E aí, Dario? Posso descer?
— Não. — Respondi seco. Inseguro. Corri até a criança e virei-a para mim pelos ombrinhos.
Era extremamente pálida, tinha os cabelos quase brancos de tão loiros e os dentes totalmente podres, chegavam a ser pontiagudos de tão corroídos pelas cáries. Estava nua por dentro do cobertor, suja de terra. Era uma garotinha. Mas não tinha olhos de alguém jovem, existia alguma maldade senil e ancestral por trás deles.
— Você tá bem? Te acertei com o carro...
A garotinha não respondeu nada. Vi que Leticia desceu do carro e vinha em nossa direção. Não resolveria pedir que ela me obedecesse, não puta da vida como estava.
— Meu Deus; machucamos você, não foi querida? — perguntou Leticia dando asas ao seu lado maternal. A criança reconheceu isso e tentou sorrir. Seus olhos refletiram a luz dos faróis como a sinalização no meio das rodovias. Incrivelmente eles estavam secos, ela não derramara uma lágrima.
— Eu tô bem, mas vocês precisam ir embora.
— Não podemos te deixar aqui machucada desse jeito. Onde estão o papai e a mamãe — perguntou Leticia.
— Morreram. O papai depois a mamãe.
— E você tá aqui sozinha? Onde você mora?
— Moramos embaixo da terra. Eu e meus amigos. Eles não são como eu; vocês precisam ir.
— Vem com a gente, vamos te ajudar — eu disse.
Como contei, gosto de ajudar as pessoas e no caso da pequena à frente, eu não fazia isso apenas para aparecer. Estava genuinamente preocupado com as consequências do machucado na parte de trás de sua cabeça.
A mão nervosa e insistente de Leticia-Minha-Jaguatirica bateu em meus ombros enquanto eu falava com a pequena.
— Que foi, pô? — perguntei estressado, olhando para ela.
Ali — respondeu com os olhos vidrados. Eu olhei.
A poeira da estrada tinha baixado deixando o ar quase limpo. Os faróis do carro iluminavam muitos metros de noite-escura à frente. Havia dezenas de crianças nuas cobertas apenas por cobertores e outros trapos. Muitos estavam se alimentando, outros prestando atenção na gente. As que comiam chafurdavam dentro de um cavalo, outros de pé comiam partes arrancadas com a boca ensanguentada. A pequena quando viu nossa expressão de horror comentou: “Não gosto de carne de cavalo, prefiro de cachorro”.
Tomei Leticia em meu colo visto que o horror a paralisara. O esquadrão de crianças deu um passo na direção do carro, depois outro e mais um. Não conseguia acertar o buraco da chave que havia sido retirada por Leticia (sempre preocupada com a segurança de termos nosso carro velho e sem seguro roubado). Minha mão tremia vertiginosamente. Leticia a essas alturas desmaiara no banco do carona. As crianças estavam um metro à frente do carro quando consegui dar a partida, logo depois de fechar todos os vidros. Buzinei sem que isso as espantasse. Teria que abrir caminho de outra maneira. Acelerei.
A pequena que eu havia atropelado acenou com um adeusinho. Das crianças ela era a mais bonita. Nas outras faltavam olhos, lábios, cabelos... Uma delas não tinha nariz o que lhe dava uma feição de caveira horrível. Vi que elas estavam com fome demais pra deixar duas refeições de nosso tamanho partir, assim, precisei passar por cima delas. Chorei um pouco quando fiz isso. A cada solavanco que o carro dava. A noite escura depois de cinquenta metros apagou as crianças de meu retrovisor. Eu apaguei-as de minha alma.
Parei em outro posto com cara de abandonado e pedi ajuda. Um vigia aceitando cem dinheiros meus, concordou em me ajudar a limpar a lataria do carro. Leticia dormia. Antes de chegar ao tal posto passei por uma placa de madeira velha escrita: Fazenda Alckmin. Não importava mais. Reuniões, caridade e salvação existem em muitos lugares e em alguns corações, mas passa bem longe da estrada velha de Pinda. Lá tudo o que existe é tristeza, desgraça e fome.
Quando Leticia acordou a convenci que sonhara com tudo. Abri uma cerveja, acendi um cigarro e olhei para a lua. Estava pequena, tímida, mas estava lá. Em algum lugar sei que iluminava criaturas desconhecidas para nós, homens.
Zumbis, fantasmas e crianças que misturavam os três mundos quando saíam para comer. Depois voltavam a se esconder onde faziam morada.
Bem debaixo de nossos pés.

















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