Água fria, coração gelado


Micael era o garoto mais branco e mais loiro da sala, tanto que deram a ele o apelido de Salomé. Pelas suas costas usavam alcunhas piores, mas nada que o transtornasse.

Chegara à escola há dois meses e tudo o que aprendera foi a falar pouco e tomar seus lanches dentro da sala de aula — essa era a única maneira de manter seu uniforme livre das gotas de sangue. Micael era um doce de garoto, segundo a professora de literatura tão doce que o tratavam feito idiota. Fazer o quê? O mundo também precisa deles, dos idiotas.
Agora estava na aula de Educação Física tentando escapar seco da piscina. Evitou a proximidade da água de todas as maneiras possíveis, mas numa escola como a Jardim das Nações o medo da água era só mais um detalhe. Depois de tantas escapadas da disciplina coube assistir àquela última aula de natação para não ser reprovado por carga horária.
Assistir; esse foi o acordo feito com o professor, nada de entrar na água com assassinos mirins.
— Ei! Salomé; entra um pouco, tá boa a água — disse um dos garotos. O maior da turma chamado Reinaldo, Reis para seu bando.
— Valeu — disse Micael subindo mais um degrau das arquibancadas de cimento ao redor da piscina olímpica.
— Deixe-o em paz, senhor Reinaldo.
O professor... Um metro e meio e uma voz bem mais audaciosa que ele. Silvio, vestido em uma bermuda ridiculamente apertada, era um bom homem que perdia a virilidade dentro de quadras de escola. Diziam que ele fora jóquei quando mais jovem, agora era só mais um meia-foda frustrado que queimava cigarros e bebia café na sala dos professores.
Na água além de Reinaldo estavam Julinho, Estevão, os gêmeos e Duduco. Praticamente o esquadrão da morte da sexta série.
A animosidade entre eles e o resto da escola era grande, mas nada comparado à que Reis tinha por Micael.
Na sexta série C, também estudava a irmã de Reinaldo, Karina. Micael nunca fez nada que mostrasse a ela algum interesse romântico e ele provavelmente nunca o faria por argumentos que se recusava a comentar, mas isso não impediu Karina de endereçar-lhe cartinhas apaixonadas. Uma dessas caiu nas mãos de Reis que desde então dedicava seus dias a estragar a vida do garoto pálido.
Micael aprendeu depressa as regras do jogo e se manteve afastado.
Uma ou duas vezes o pegaram desprevenido e fizeram coisas como arrancar a cueca dele sem tirar sua calça ou obrigá-lo a lamber o tênis sujo de merda de Reis. Punição padrão.
Reis queria mais. Queria sangue e pânico nos olhos azuis de Micael.
O maior medo de Micael (segundo sua redação lida na aula de literatura) era nadar. Havia escapado da revanche de Reis deixando de usar o banheiro ou se esquivando dos recreios, mas naquela última aula do semestre a sorte mostrou seus dentes podres para Reis.
Depois dos seis bate-e-volta na piscina, o bando continuava reunido aos cochichos em um dos cantos. Micael os vigiava de soslaio lendo Tommy Knockers de Stephen King. Outro garoto se aproximou.
— Por que deixa eles te tratarem assim? — Era Ralf, só mais um garoto que fingia querer ajudar.
Micael fechou o livro e ergueu seus olhos magoados. Seus cabelos estavam bagunçados e formavam pequenos cachos; davam um jeito inocente a ele.
— E por que você deixa que eles me tratem assim?
Ralf olhou para a água calma da piscina.
— Já apanhei minha parte.
— Como se livrou das surras? — perguntou.
— Você apareceu — respondeu Ralf num sorriso discreto. Depois de um longo suspirar de Ralf, disse: — Então... Acho que não devia te contar, mas os caras estão aprontando alguma...
Micael tornou a fechar o livro e prestar atenção em Ralf.
— Ouvi por cima... O Duduco tava combinando alguma coisa com o Reis na aula de Educação Artística. Não ouvi direito, mas ouvi seu nome. Quando vi você aqui, perto da piscina... Eles vão te pegar.
— Que se dane — deu de ombros, Micael.
— Tá maluco? Eles vão arrancar seu saco, cara.
— Humm...; acha que ainda dá pra escapar?
— Se sair agora, acho que sim.
— Não dá... Eu perco o ano, cara. Preciso ficar aqui até o fim da aula.
Ouvindo disso Ralf apanhou suas coisas e foi para casa. Não queria se meter de novo com o bando que o encarava da água. Havia feito sua parte e ela não incluía apanhar no lugar de Micael.
Ele reabriu o livro e continuou sua leitura. Ouvia os garotos o provocando da água e sentia seu coração acelerar, mãos suadas. Mas como explicaria perder um ano? Diria que era um medroso? Que não conseguia resolver seus próprios problemas? Não... Não de onde vinha.
O relógio da quadra dava a ele mais dez minutos de angústia, de hipóteses sempre ruins como ser afogado ou ser obrigado por Reis a beber da privada como havia feito com outros caras da escola. Seu bando tinha uma longa ficha criminal limpa pela a grana de seus pais, imunidade diplomática, nada tão diferente do mundo dos adultos, apenas mais resumido. Na escola existiam apenas duas leis: bate e ri ou apanha e chora.
— Vem mergulhar, Salomé! Seu cu doce não vai derreter, não — disse Estevão. Os outros riram e vaiaram.


A continuação vocês encontrará na Antologia Solarium 3 da Multifoco, em breve o link!



0 comentários :

Postar um comentário