Vinte Andares






E aqui estou eu. Escrevendo e lembrando. Ainda pareço olhar para meus pés apoiados no alto dos vinte andares do edifício onde finjo trabalhar a mais de um ano. Agora eu sei como se sente um peixe prestes a ter seu aquário explodido... Eu acho mesmo que a vida é isso as vezes, uma jaula, uma aquário ou coisa parecida. Toda vez que eu penso nisso eu penso no cara que joga a ração e escolhe os peixes que vai botar do nosso lado. Sabe de quem eu estou falando? Você deve estar pensando que como está lendo esse texto eu não pulei não é? Cuidado com o que esse farelo quente de neurônios entende cara. Não ache que seu cérebro ou seus olhos (que na realidade são ligados a ele) enxergam a verdade. Podem até conseguir ver, mas daí até entender é outra coisa.

O fato é que todas as cagadas que fiz na vida (espero mesmo que você não se zangue pelo meu jeito de falar), me trouxeram até o momento em que eu quis dar fim a ela. Eu não nasci tão branco como eu queria, não sou rico, não sou inteligente a ponto de ser contratado pela NASA e nem tenho uma vara de vinte centímetros. Sou digamos... Dentro do padrão. E isso nunca me satisfez. O vento estava soprando forte naquele fim de tarde e o senhor sol se preparava para dar um espetáculo de despedida e tanto para mim. Eu adorava o por do sol.

Não demorei muito pra tomar a decisão de espatifar minha massa encefálica pelo chão de piso cobacabana onde planejava cair. Podia na queda pegar algum coitado que nunca imaginaria meus noventa e cinco quilos concentrados na barriga despencando sobre ele, mas esse cara teria muito azar; mais que eu e só por isso mereceria ser esmagado. Assim eu pensava. Como todo cara com mais de trinta que se recusa a obedecer as regras. Nunca gostei muito disso também; das malditas regras. Desde pequeno tem alguém pra colocar freio em você, já reparou? E você obedece assim como eu até que um dia o copo enche, a bomba explode e não cabe um milímetro cúbico de ar dentro do seu saco enrugado (desculpe de novo se ofendi alguém). Aí você acaba como eu. Na beira de um parapeito.

Lá embaixo as pessoas olhavam para mim e acabavam indo embora achando que era algum funcionário da limpeza. Eu poderia até ser, mas duvido que um operador de rodinhos andasse de jaleco pelos parapeitos dos prédios. Tem isso também... Sou médico.

Sendo um doutor te garanto uma coisa meu amigo: nunca vi nenhuma fumacinha branca chamada alma sair do corpo de ninguém. Se tivesse visto talvez não estivesse aqui. Ou nunca tivesse subido nesse maldito parapeito. Eu tive uma vida boa sim... Sei que é isso que você está pensando, como se pra se matar alguém tivesse que ter sido molestado por seu pai alcoólatra. Não cara; nunca passei por isso. Também nunca passei fome, nem muito frio – a menos que eu quisesse como na maldita viagem pra Campos do Jordão com minha esposa no festival de inverno. Contei isso? Que sou casado? Pois é.

Conheci a Amanda na época da faculdade. É uma boa garota. Ainda é uma garota, apesar de seus mais de trinta anos. Ela não em culpa de nada. Acho que ninguém tem, nem mesmo o dono do aquário. Filhos eu ainda não tive. Nem quero. Colocar mais dois sapinhos nesse mundo onde chove sal. Nem pensar cara. Tava te contanto do parapeito... Aquele dia eu trabalhei feito um cavalo no consultório. Atendi desde toque de próstata até cancro mole. Sou urologista. Uma merda, eu sei. Ficar vendo o bilau dos outros o dia inteiro e bla, bla, bla. Foi só outra besteira que eu fiz na vida. O que me trouxe para o parapeito foi outra coisa. Uma lembrança de infância. Algo que me fez querer ser médico. Ninguém escolhe essa profissão à toa, nunca acredite se algum medico te disser isso. Ele na certa tem alguma coisa a esconder feito eu. Melhor te contar tudo logo...

A vida começou a me trazer para o parapeito no inverno de 1995. 
Eu morava com meus pais em uma cidade no sul de Minas chamada Posso Fundo. Meu pai era farmacêutico e acabou arrumando uma bocada boa por lá. Grana forte que vinha do estado e caia nas mãos do prefeito que queria alguns “sócios” para distribuir. Claro que era ilícito, dinheiro de merenda escolar ou coisa assim. Eu nunca soube direito, mas tivemos que sair da cidade no meio da noite e só com a roupa do corpo. Mas isso foi bem depois do que vou contar.

Eu tinha dois grandes amigos na cidade, um deles chamado Daniel e o outro Espinha. Eu chamava ele de espinha como todo mundo. Até a mãe dele chamava ele de espinha. Acho que você pode imaginar o porquê. Era engraçado pra gente, mas acho que não era divertido pra ele que tinha nascido com aquelas bolas amarelas na cara. Um horror. Mas voltando ao assunto onde estava um dos três moleques podia procurar pelos outros dois. A gente reinava na cidadezinha. O que mais fazíamos na época era ouvir bandas de Seattle e estourar lâmpadas dos postes a noite com estilingue ou qualquer outra arma que tivéssemos acesso. Era engraçado, um pouco perigoso e pra gente qualquer coisa era boa desde que estivéssemos juntos. Comecei a fumar nessa época também. Até hoje quando alguém lembra disso...

A gente mandava tranqüilo na molecada até que chegou esse carinha vindo de São Paulo. Na escola já avisaram uns dois dias antes que todos deviam recebê-lo bem e ajuda-lo em sua readaptação. O moleque deve ter feito coisa bem pior que arrebentar lâmpadas pensamos os três e claro; ficamos sedentos para conhecê-lo. A escola estava uma loucura quando ele chegou. E ele era o próprio Kurt Cobain. Exceto que o original era bonzinho e fracote.

Renato era um demônio.

Nós conhecíamos pouca gente de fora e éramos considerados os senhores arruaceiros até a chegada dele. Ele era mais velho. Devia ter uns dezoito e mais repetências na escola que qualquer outro garoto que a gente conhecia. Alguma coisa em Espinha irritou muito ele; desde o primeiro dia Renato encarnou nele... “Babaca, sai daí” foi a primeira expressão que ouvimos dele na escola, quando roubou o lugar de espinha. Ele nem reagiu, mas mesmo assim ouviu que parecia um sabugo de pipoca com aquela cara nojenta. Nós pensamos em defende-lo, mas como todo mundo na escola ficamos com medo do garoto novo. Depois desse primeiro dia nunca mais comemos nenhum salgado sem que ele recusasse primeiro. Espinha era o que mais sofria nas mãos de Renato. Era uma espécie de Zumbi de vampiro dele. Acabamos nos afastando dele depois disso. Sei que não devíamos ter feito isso, mas o mundo dos garotos sabe ser bem cruel ás vezes; é uma savana africana. Ou você aprende a bater como um leão ou corre como um guinú. O pobre do Espinha era como uma zebra, nascida pra ser alimento ou estrelar em circos pra que um monte de crianças cheias de ranho no nariz tenham suas fotografias em cima dela. Espinha começou a andar de capuz pra lá e pra cá; pelos cantos. A gente sabia que tinha alguma coisa de errado com ele. Sabia e não fez nada.

O Espinha gostava de uma garota na época. Chamava Jéssica e era a menina mais gatinha da sala. Bonita mesmo e meio metida a rebelde assim como a gente. Era a única menina da sala que fumava no banheiro junto com os caras, principalmente com o Espinha. Sei lá se era por pena, mas ela conversava muito com ele. Até o Renato chegar e acabar com a vida do cara. Toda a semana a gente tinha uma festa pra ir, coisa de cidade pequena: quando um pai viajava a gente ia pra casa do moleque zoar, dar uns beijinhos e voltar mais homem pra casa do que saímos. Foi em um desses dias que o Renato ficou com ela. A Jéssica estava esquisita aquele dia, parecia sonolenta; distante. Foi o outro amigo nosso – Daniel – que viu Renato subindo com ela para o quarto. O canalha fez com ela dormindo o que o Espinha sonhou a vida inteira fazer acordado. A garota entrou em uma depressão ferrada depois disso, tanto que perdeu uns vinte quilos. E nunca contou nada pra quase ninguém. Sofreu quieta por um bom tempo e só falou tudo para o Espinha quando ela descobriu que tava grávida do “Kurt repetente”.

Renato continuou a abusar do Espinha, mas ele estava diferente. Estava pensando... As coisas pareciam iguais tirando a barriguinha da garota que crescia apesar dela tentar disfarçar com a perda de peso. A gente pensou mesmo que não ia dar em nada, além de uma pensão depois de um processo de paternidade. Esse tipo de noticia se espalha feito lepra em cidade pequena e era questão de tempo para os pais da garota ficassem sabendo por que a filha vomitava todo dia seu almoço. Até um peido voava longe depressa em Poço Fundo.

A coisa ficou estacionada até o dia que o Espinha encontrou a arma do pai dele dando sopa no guarda roupa.    

Foi a manhã mais triste da cidade. Espinha entrou na sala de aula e esperou Renato sentar na cadeira que fora dele um dia. Um silêncio estranho tomou conta de todo mundo como se a gente já soubesse que a tempestade ia se derrubar sobre o primeiro colegial. Era esquisito uma sala de aula na escola do estado tão quieta sem nenhum professor fingindo lecionar.

Jéssica sabia... Ela tinha um brilho diferente no olhar. Hoje eu reconheço esse brilho com a minha profissão. É um olho de viciado prestes a tomar sua dose. Desejo puro, e só Deus pode imaginar a vontade de ver Renato morto que ela tinha. É... Mas Deus não matou aquele desgraçado. Quem matou foi o Espinha.

Ele não disse uma palavra apenas se levantou, apontou para o saco do Renato em sua calça que andava sozinha (como toda calça de Grunge) e espalhou sangue das bolas dele pelo chão. Depois com o cara se contorcendo atirou no meio da testa. Espinha olhou pra gente sorrindo, depois pra Jéssica e meteu uma bala dentro da boca. O sangue parecia aerossol quando a bala saiu pela parte de trás de sua cabeça manchando o rosto branquinho de outra garota chamada Cláudia (dessa eu gostava). A garota chamada Jéssica andou até ele, pegou a arma calmamente como se pegasse um sanduíche e disparou duas vezes. Uma na barriga e outra na têmpora direita.

Meu pai me trocou de escola, de amizades e só não trocou meu sexo por ser machista demais. Eu me afastei de Daniel ou de qualquer coisa que me lembrasse de Poço Fundo ou daquela manhã de tragédias promovidas por um garoto legal. Acreditem em mim quando digo que nem todo assassino nasce filho da puta. Ali me tornei frio e ateu. Acho que tive razões pra isso. Também resolvi ser médico; foi por conta daquele sangue todo. Médico gosta de sangue, e todo médico pode te confirmar isso. Terminei a faculdade, me casei e acabei enjoando da “vida como ela é”. Isso me trás de volta ao velho parapeito. Não tenho nada mais que isso pra explicar, e se Deus existisse comprovaria como eu me sentia a você. Eu tinha cansado de tanta merda, acho que foi isso. Foi quando o cara de Jeans escuro apareceu. Fazia anos que eu não via alguém com uma roupa tão fora de moda. Ele devia ter coisa de uns cinqüenta anos, barba rala começando a ficar branca e até que estava em boa forma. Usava umas botas de couro também, botas pretas.

- Ta fazendo o que aí, doutor? – ele me perguntou com a voz mais grossa que eu já ouvi na vida. Aquela voz ficaria bem melhor em um negro, isso eu posso dizer sem parecer racista (coisa que definitivamente eu não sou; acredite nisso). Sua voz era linda.

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