Passado a sujo



A memória é um artefato confuso. Hoje do nada me lembrei de uma garota que eu costumava sair. Vamos chamá-la de Emily (em homenagem a menina do exorcista com o sobrenome Rose). Não que ela fosse possuída por demônios, mas por vestir-se como a meretriz das trevas, uma Elvira com seios ainda melhores. Era uma garota legal, fã inveterada do Rush e como disse: com seios duros e enormes. E claro que eu a deixei partir como todas as outras garotas que milagrosamente sentiram algo por mim que não fosse pena. Fazia um friozinho bom naquele ano. Era junho de dois mil e dois. Foi numa das últimas noites que saímos juntos que conhecemos o cara mais deprimido da cidade. O Zé Roberto.

***

Tem um bar aqui na cidade que costumava ser “o point” em meados de dois mil: Mutley Rock Bar — hoje nem é rock-bar, nem tão bom, mas ainda é um lugar frequentável com garotas fáceis. Naquele junho, quando eu saía com a Emily-princesa-gótica-de-Gomorra, era o melhor lugar desse mundo.
Na noite em questão depois de brincarmos um pouco em minha casa e completarmos nossos fluidos com álcool partimos para o boteco a fim de continuarmos chapados. Gente bonita (ainda mais quando se está bêbado), maços extras de cigarros e a liberdade que todo canalha tem — confesso que sinto falta daqueles dias. Éramos os dois bandidos, eu um pouco mais que ela e com mais nomes tatuados na cabeceira da cama, ela com um sexy appeal bem maior que o meu. A noite correu bem, perdi a voz de tanto gritar, caí duas ou três vezes sendo escorado pela Emily e como todo bêbado insaciável só deixamos o bar quando as tias do balcão começaram a jogar baldes de água para remover a cerveja melada do chão.
— E agora? — perguntei mal articulando as palavras.
— Vamos pro conveniência da esquina, tô a fim de tomar mais alguma coisa antes de te pegar de novo.
Eu não pensava em pegar qualquer coisa que não fosse outra garrafa e talvez numa tentativa “mui matcho” de evitar uma provável broxada alcoólica tenha concordado em ir até lá bebericar mais algumas em vez de levá-la pra casa. Eu já estava naquele ponto em que a cabeça de cima não consegue fazer a de baixo estufar (nem mesmo com aqueles air bags maiores de Elvira enfiados num corpete besteirento). Chegando ao posto-conveniência, fiz uma gracinha cochando o mascote — um tigrão de fibra de vidro com um buraco no cu —, apanhei umas cervejas e voltei pra mesa.
— Noite boa hein? — puxei assunto depois da primeira golada, assim que segurei o vômito.
— Meu; você é doido — ela disse.
Gostei de ouvir, mas não sabia por que tamanho elogio. Em seguida ela me contou que era por eu ter subido no palco e feito merda. Além da fama de doidão o ato me valeu um soco na nuca de um dos seguranças. Sempre que eu ficava bêbado achava que minha banda que só tocava (e mal) duas músicas do Metallica e uma do Maiden era a maior promessa do metal nacional e com isso me achava no direito de subir no palco e arrotar — e com sorte peidar no microfone. Às vezes conseguia; na maioria ganhava um olho roxo e uma bica na bunda.
Continuamos conversando e tomando nossas cervejas que já desciam azedas, eu contando vantagens e ela diminuindo as transadas para não parecer bisca. Lá pelas cinco e tantas alguém sentado numa mesa ao lado começou o último show da noite. Eu estava bêbado demais para lembrar se o figura estava ali o tempo todo desde que chegamos ou não. Acho mesmo que não.
— Ai meu Deus! Por que isso? Por que meu senhor? — gritava alto o algo entre macho e fêmea corado de bêbado.
— Coitado — resmungou a Emily.
— Deve ter feito merda, foda-se.
— Não fala assim, olha o estado dele.
— Deixa pra lá. Depois das cinco só acontece merda. Ajudar alguém nesse horário é tipo rezar depois que a missa acaba, inútil.
— Nossa! Não fala assim — ela disse usando aquelas garras negras de Morgana para apertar o furão quase morto dentro da minha calça.
— É né? Deve tê acontecido alguma merda com ele né... — respondi mais calmo (e quase duro) agarrado por aquelas mãos habilidosas. Sem falar da boca dela, da bundinha, da menininha pálida e raspadinha e de como bebia o que outras desprezavam.
— Vâmo lá? — pediu-me.
— Ah não Emily, deixa o maluco ali vai.
Ela acabou se convencendo a ignorar o cara tristonho, mas era tarde demais: ele já havia notado nossa preocupação inicial. E se pôs a berrar...
— Ai! Quantas quimeras efêmeras terei que aguentar até o fim derradeiro me arraste aos porões do inferno!
Devíamos ter percebido que o cara era delicado de pronto, mas no calor das cervas que nos enrolavam a língua mal notávamos que era quase dia. Nada contra, mas um gay bêbado, as cinco da madruga, recitando Clarice Lispector errado e chorando? Prelúdio de merda... Nesse ponto eu começava a pensar mais seriamente em me re-lambuzar nos peitões da Emily lá em casa.
— Que foi amigo? — ela perguntou já na mesa do cara antes que eu pudesse interceder.
— Essa vida desgraçada! Ninguém tem amor para dar a uma flor!
Juro que ele falou isso. Aliás, quase tudo o que falava terminava em rima pobre. Sei disso mesmo sem escrever nada além de bilhetes na época. Pobre é pobre... Rima é rima, biba é biba.
— Compra um salgadinho pra ele, Edu.
— Ah não, salgadinho?
— Compra vai — pediu a safada simulando sexo oral na long-neck que tomava..
Como negar um pedido desses? Comprei logo dois, um Doritos e uma batata frita e fui pra mesa do cara estranho recitador de Lispector.
— Qual seu nome cara? Precisa se acalmar. Desse jeito alguém te bate, meu...
— Zé Roberto.
— O que aconteceu com você? Por que esse desespero? — perguntei.
Nesse ponto eu estava genuinamente preocupado com ele. O rock bar na época era conhecido por temperar as piores brigas da cidade. Saía até morte. Eu via de longe aquela alma chorosa sendo curada na bica dali há pouco. Fora que gente de bem dorme cedo...
Alguns chamam esse lance meu de “excesso de legal” de empatia, outros de bondade, a maioria e eu chamamos de “Trouxabilidade”. A Emily ficava excitada, gostava de me ver ajudando os outros.
— Eu fui abandonado — resmungou a criança.
— Calma cara, mulher é assim mesmo — respondi inocente.
A Emily cuspiu um pouco da cerveja que tomava num acesso de riso e eu fiquei no limbo por um tempo pensando o que tinha dito de errado. Pô... O cara chamava Zé Roberto! Nome de homem poxa...
— Não foi mulher! Foi meu namorado.
Dessa vez eu é que quase cuspi minha cerveja. Bem feito pra mim por não ter observado bem a borboletinha triste à nossa frente.
O cara tinha um metro e sessenta mais ou menos, olhos azuis que apareciam demais (claro... ele usava rímel), uma camisetinha salmão baby-look e asseado demais para um homem bêbado. Fora suas declamações românticas podronas em altos decibéis. Resumo: Gayzaço. Uma fruta, uma flor. Não aquele gay modesto, moderno e gente boa que te respeita, mas uma Priscila reinando solta no deserto sem roupas espalhafatosas ou maquiagem carregada. E eu ouvindo aquele merda toda pensando em ganhar uma gentileza oral da Emily-peitões-de-Elvira.
— Nós éramos donos do Albatroz — disse ele.
Quase cuspi de novo a breja. Era o bar gay mais mal frequentado da região. O bar era tão podre que seria rejeitado pelo Cazuza, pelo Fred Mercury e pelo Elton Jonh, cheirados, adolescentes e bêbados depois de meses sem ver um pinto. Um nojo segundo constava (claro que eu nunca entrei lá né camarada...). Fiz menção de levantar da mesa, mas acabei convencido pela Emily a ouvir o resto. Na minha cabeça estávamos brincando com a sorte, pelo menos eu que tinha uma reputação (baixa) a zelar. Imagina a cena? Eu, ela e de repente a tropa de elite gay da cidade chegando junto na mesa? Uma revoada de purpurina depois de uma noitada no Albatroz? E pior: com um provável surto do namorado gay-mais-gay-que-ele dele pra cima de mim e da Emily! E eu bêbado demais para explicar qualquer coisa...
— O que aconteceu com vocês? — perguntou Emily. Eu já não queria mais saber de nada que não fosse meu colchão.
— Ele me seduziu, me enganou, roubou meu coração e o bar.
— Como assim patrão? — perguntei pra não sobrar na prosa.
— Eu sou uma apaixonada!  — desabafou. Quase vomitei. Nunca entendi gay querendo se passar por transgênero; ainda mais o Zé Roberto à nossa frente com seu braço cabeludo.
— Ele me usou, transamos a noite toda e quando eu estava maluca ele pediu pra eu assinar alguns papéis.
— Cara, me poupe dos detalhes tá bom?
— Acho que você ia gostar.
Nesse ponto quase perdi o resto da compostura e rachei a cara da biba. Só não fiz por que ficou claro que a coisinha delicada a nossa frente estava mais bêbada que eu e Emily juntos.
— Bora Emily.
— Peraí vai, deixa ele falar. Não podemos deixá-lo aqui. Alguém vai bater nele.
— Foda-se — eu disse enquanto O Zé tinha novo acesso de choro. — Se não for comigo vou sozinho.
— Tá bom, vô no banheiro e já volto.
— Não demora.
Enfim: sobramos eu e a biba na mesinha de plástico do posto. Eu rezando para que o esquadrão do capitão gay não se abatesse sobre a mesa e ele chorando. Puta merda; eu só pensava em não ser visto por um conhecido com o ex-dono-gay-deprimido do Albatroz. Nem me esforçando eu arranjaria uma explicação decente.
Logo que a Emily sumiu pela porta do WC o safado ergueu os olhos borrados de rímel  Putinha de satã é o que ele era. Filho da puta.
— E você e ela? Namorados?
— Não — respondi, mais seco que o Saara.
— Ela é bonita, deve transar bem.
— Transa sim, mas você não gosta disso, hã? — Provoquei. (Ledo engano...)
— Não. Eu gosto de pinto no meu cu.
Cacete, eu nunca tinha ouvido uma coisa daquelas. Fiquei branco de susto. Não sou homofóbico ou essas merdas aí, mas não queria mesmo trocar figurinhas com o senhor Lispector sobre as preferências e manobras sexuais-anais-devassas dele.
— Cala a boca véio; tá falando merda.
— Você ia gostar do “meu” — disse dando um levantadinha a direita no quadril.
— Vai te fudê, Zé! Gosto de boceta sacou?
A cara de nojo do Zé foi engraçada pra caralho. Pena que eu estava sem vontade nenhuma de rir. E a Emily que não chegava nunca.
— Come meu cu?
Eu levantei e preparei o soco. Ia ser uma bela porrada bem no meio daquela cara bronzeada e molhada de lágrimas. O assédio tinha extrapolado.
Mas o safado tinha sorte. A Emily segurou meu braço antes que minha mão arrancasse algum sangue da biba. Ele ria desvairado e recitava alguma coisa que nem eu, nem ela, nem um dos frentistas do posto que começavam a nos notar entendiam.
— Tá nervosa ele hein? — ele disse.
— Vai te fudê cara!
— Queria mesmo — ele retrucou (daí eu levei uma lição: é extremamente difícil para um homem ofender um gay, quase impossível).
— Parem com isso os dois — disse Emily.
— Você não vai contar pra ela?
— O quê? — perguntei.
— Que pediu pra eu transar com você. Que queria meu cu.
Emily disparou a rir junto com o “Zé”. Eu virei às costas e saí em direção a meu carro pra não quebrar o maxilar daquele desgraçado. Minha cabeça rodava bêbada sem raciocinar muita coisa, pensando que se ela acreditasse naquilo eu ganharia uma fama difícil de me livrar. Por sorte eu a comia bem demais (e ela a mim) para restar alguma dúvida. Ela saiu no meu vácuo deixando a biba ao relento, debruçada na mesinha de plástico.
— Esquece isso vai, ele tá bêbado.
— Eu também, mas nem por isso fico inventando merda.
— Coitado, olha só o estado dele, tá quase desmaiando. A gente podia dar uma carona pra ele.
— Tá maluca?
— Ah vai, faz isso por mim? Tenho um monte de amigos gays, gosto deles. Coitado desse ai, alguém vai arrebentar com ele se o deixarmos aqui.
— O que eu ganho?
Amigo, não vou te contar, mas ela me convenceu. Safadinha.
A essas alturas a biba estava desmaiada. Pegamos o Zé e o colocamos em meu carro, eu pelos sovacos, ela pelos pés. O desgraçado mal conseguia articular o endereço. Disse meio em “baixa rotação”, e depois de nos perdermos duas vezes pelo caminho (eu acho que de propósito por ele ter esperanças de conseguir minha pica) encontramos a casa do elemento.
— Não querem entrar?
— Cara, vou te dar um conselho. Dê a bunda a vontade, mas não tente forçar ninguém a comer essa porra aí.
— Tá bom, desculpa gente.
Nem fiquei pra ouvir mais nada. Tinha feito mais por aquela bichinha do que faria por um parente. Agora meu negócio era o prêmio da Emily. Rasguei pra casa. Meu Johnny Bravo latejava dentro da calça pensando na festa dos buracos enquanto o sol despontava no horizonte. Ela começou a me chupar no carro mesmo. Confesso que quase broxei de início lembrando do desgraçado do Zé Lispector, mas a habilidade daquela mulher das trevas não deixava essa brecha.
— Chegamos, vamos continuar lá dentro — eu disse.
Saí do carro com o meninão pra fora mesmo. Ainda não sei se tinha algum vizinho acordado perdido pelas varandas da rua, mas naquele tempo eu era tão ou mais promiscuo que uma prostituta. Acho que eles realmente não se surpreenderiam vendo isso ou coisa pior vindo de mim. Acabei guardando o pau em respeito a minha cachorra que estava no quintal. Eu raramente usava a porta da frente, preferia entrar pela cozinha nos fundos de casa.
— Me passa a chave — pedi.
— Não tá comigo.
— Merda, eu não te entreguei, não é?
— Não. Onde você guardou?
— Ah não, puta que pariu! — rosnei dando um tapa em minha testa. — A porra da chave tava no banco de trás do carro onde o “Zé Lis” tava desmaiando.
— Será que ele roubou?
— Certeza. Na cabeça do desgraçado eu voltaria lá pra buscar. Merda.
— E agora?
Sei lá o que me deu, mas resolvei esquecer da chave. Aliás, sei bem o que me deu...
— Agora eu vou prender a Lilith e você vai pagar o que me deve.
— Aqui na varanda?
— Ou posso te levar pra sua casa e acertamos depois... — respondi num riso frouxo.
O que eu posso dizer é que ficamos acordados até meio-dia, mais cadelas que minha cachorra que assistia a tudo pela grade da lavanderia. A vida às vezes nos dá dessas recompensas por sermos caras bonzinhos. Foi à noite mais devassa da Emily, provavelmente a minha. Vou te poupar dos detalhes sórdidos, mas dei a ela o que o Zé queria e todo abecedário de Kama sutra que eu conhecia. Estragamos nossos joelhos, ralamos as costas no cimento, ralamos a bunda no chão e depois dormimos. Fomos atrás do chaveiro lá pelas duas da tarde depois dela beber o que quis de mim (literalmente).
Nunca mais vi a chave, mas tornei a ver o Zé Lispector andando com um olhar perdido pelas ruas. Em semanas deixei de ver Emily, as garrafas, minha cachorra morreu e eu me tornei um cara decente. Logo depois fiquei sabendo que o Albatroz fechou e que o dono e o ex-dono estavam mortos. Disseram que os dois estavam com AIDS e que se mataram de desgosto. Pra mim o banho de sangue foi a vez do Zé Lispector ir à forra.
Quase nunca entendemos os contratempos da vida que acabam por desagradar, ou não lembramos das coisas exatamente como aconteceram, mas em uma coisa acredito: o passado sempre nos traz boas histórias e raramente no presente encontraremos um lugar melhor que ele. 


0 comentários :

Postar um comentário