O violão de Johnny


1

— Ah cara, vai se ferrá que eu vou acreditar numa coisa dessas — disse Cabeça acendendo um baseado.
Como sempre ele e o amigo e dono da casa aproveitavam a ida dos pais ao centro espírita, como toda quinta: o dia do “basic”.
Cabeça levava o apelido mais pelo cabelo ruim do que por sua circunferência craniana. Ele já nem ligava mais da pegação no seu pé a cada corte de cabelo. Não gostava mesmo é quando alguém falava em sua irmã. Com isso ele ficava puto; de verdade. Ou que falassem da pedaçuda da mãe dele. Na casa do Cabeça os DNAs estragados foram todos para ele e para o pai cachaceiro.
— Tô falando sério cara, tá na casa da minha avó. Pelo menos duas vezes por ano ele toca sozinho dentro do armário trancado.
— A única coisa que toca sozinho em um lugar trancado é você; e chama punheta isso e não violão.
— Vai se fodê. Passa o bagulho aqui... — pediu Novato.
Ele também não se chamava “Novato”, mas como foi o último da turma a entrar e se livrar do tiro de guerra acabou virando apelido a piada. De todos da turma do bueiro só sobraram eles dois na cidade, o resto era inteligente demais pra morrer ali... Agora eles estavam bem mais velhos que na época do quartel quando qualquer velha causava uma ereção. Os dois não. Continuavam dois maloqueiros de “prima” com vinte e cinco anos, menos ideias brilhantes e empregos honestos. A única coisa que aumentou dentro da cabeça deles durante esse tempo foi a fumaça de “delta”. Novato era magrelo de nascença e de boa família, mas acabava ferrando tudo andando pela cidade com caras feito o Cabeça.
— Fala sério agora... Esse lance do violão... — pediu o carinha de cabelo ruim que sentia a mente levemente distante.
— O pessoal aqui de casa conta que dois tios do meu pai, dois pingaiadas pra falar a verdade, nos tempos de jovem deles, isso bem antes do tempo do onça, tocavam música sertaneja pelos sítios da região.
— Você lembra o nome da dupla? — perguntou Cabeça.
— Sei lá cara, devia ser... tipo... “Pinto loco e cabacinho”; “Almoço e Janta”; alguma porcaria dessas. Cabeça caiu na risada cuspindo fumaça pra cima.
— Me amarro nessas porcarias.
— Em música sertaneja? — zoou Novato.
— Vai tomá no tico cara, tô falando dessas coisas do além. O tio do seu pai mora aqui na cidade?
— Um deles. O irmão do dono do violão.
— E o outro? O dono?
— É por isso que a coisa faz barulho sozinho, mataram ele numa festa de roça.
— Caralho véi — disse Cabeça chapado. — E como foi?
— Cara, essas festas de roça eram uma lona preta jogada em um monte de pau seco, dois violeiros e o povo que ia na missa. Tudo adubado com pinga. Pelo que eu sei o tio do meu pai morreu porque peidou na cara de um caipira enquanto ele se engraçava com uma menina. O cara ficou macho, pegou o violão e bateu nele até matar.
— E como o violão tá inteiro? — perguntou Cabeça desconfiado; achando que pegaria o amigo com as calças na mão.
— Então... Ele gostava tanto daquela coisa que pediu antes de parar de cuspir sangue para meu outro tio; esse irmão dele; arrumar. Depois disso nunca mais o violão saiu do guarda roupa. E nem perdeu a afinação.
— Você já tocou com ele? — perguntou Cabeça.
— Uma vez só... Foi foda... Ele te deixa bom cara. Você toca coisa que nem sabe. Chega a dá medo.
— Eu quero vê o bicho!
— Não dá.
— Por que não véi? Tá com medo?
— Não é isso. É por causa da chave... Fica com o tio do meu pai e ele só abre o armário no aniversário de morte do irmão dele. Foi numa dessas vezes que eu toquei. Era pivetinho ainda.
— Quando você fazia troca-troca com o bengala?
— Vai te fudê cabeça!
— Falando sério... Quando é a data?
— Que merda cara... Esquece disso.
— Fala vai? Quando é?
— Semana que vem.
— Cara eu quero ouvir esse negócio — disse Cabeça tragando fundo de novo. — Convence teu tio vai...
— Sempre que você encana com uma coisa acaba saindo porcaria. Lembra quando quis ver o revolver antigo do meu vô?
— Aquilo foi acidente.
— Cara, você quase acertou minha avó! E ainda fez um buraco na TV.
— Pelo menos era velha a porra da TV. E sua avó também.
— É, mas meu vô não queria jogar nenhuma delas fora.
— Apesar de não prestarem pra nada né? — disse Cabeça dando risada e quase se afogando de tosse depois. Novato riu junto pensando na avó dentro do lixo cheia de camisinha usada na cabeça. Outra piada promovida pelo cigarro forte...
— Tá bom, vai — disse Novato.
— Vai falar com ele?
— Vou sim... — respondeu introspectivo o dono da casa; depois acordou de novo. — Puta merda; apaga essa bagaça que eles chegaram.
— Apagar como? — perguntou Cabeça.
— Come a bita — disse Novato brincando.
— Cacete...— suspirou Novato. Ele comeu mesmo. Depois esvaziou uma lata de bom ar e dispensou o amigo pra casa. Novato torcia pra que ele esquecesse o lance do violão, mas conhecia bem sua falta de noção. Fosse algum emprego novo esqueceria antes de chegar à sua casa e socar a última da noite pensando na mãe de alguém, mas um violão usado como estaca? Que tocava sozinho? Nem fodendo...

2

— E aí? Falou com ele? — perguntou cabeça assim que encontrou com o Novato. Os dois trabalhavam em um supermercado (que não tinha nada de super a não ser baratas enormes e anabolizadas) meia-boca da cidade... Qual cidade? Era mais meia-boca que o supermercado...
— Ainda não cara — respondeu. — Não encontrei com ele ainda.
— Cara não esquece hein.
— Acho que nem vai dá tempo...
— Não é só na semana que vem o aniversário do defunto?
— Não chama ele de defunto...
— É melhor que cadáver... Bom, mas é na semana que vem ou não?
— Eu tava locão ontem... É depois de amanhã a porra do aniversário.
— Ah cara, me dá o telefone do seu tio que eu mesmo falo com ele.
— E vai oferecer o quê em troca Cabeça? Teu cu?
— Vai se fudê. Eu falo que sou de algum jornal... Paranormal... Da TV...
— Deixa quieto. Eu falo com ele.
— Posso confiar? — perguntou Cabeça deixando as roupas no armário e vestindo o maravilhoso uniforme verde limão do mercado.
— Pode; igual você confia no rabinho da Suzi... — disse Novato apontando para a operadora do caixa número nove.
— Se eu tivesse um “botoquinho” daqueles pra me esconder a noite nem ia querer saber da porcaria do violão do defunto.
— Defunto não cara... Ele é meu parente.
— Foi mal — respondeu cabeça. Vou chamar ele de Johnny então...
— É melhor que defunto, mas parece que tá falando de um pinto... Johnny...
Os dois amigos foram pra mais um dia empolgante no trabalho onde passavam mais da metade do dia roubando comida e tentando comer alguém, de qualquer jeito tratavam de comer... O dia passou voando com a visita de um gordo veado da matriz com fama de mau que supervisionava as prateleiras. Para variar, Cabeça se complicava com o gordo descobrindo mais de vinte embalagens depenadas de chocolate marcando atrás da prateleira.
— Que é isso aqui senhor Patrick? (era esse o nome dele... coisa triste quando o apelido é melhor que o nome de alguém...).
— Se eu não estou muito enganado são embalagens de chocolate vazias.
— Isso eu sei — disse o gordo com a língua presa. Só mais uma criaturinha vermelha e afeminada querendo mandar nos outros. Para azar dele tinha pegado Cabeça em um dia ruim...
— Então não me faças perguntas bestas — disse Cabeça sarrista, exagerando no português.
— Sabe que eu posso te mandar embora, não sabe?
— Por que eu te chamei de besta ou por que comi o que você queria?
— Pelo dois — respondeu o gordo mais vermelho que uma glande espremida.
— Então você assume que é uma besta gorda tarada por chocolate?
— Já chega. Tá demitido — disse o gordo com os olhos rasos d’água.
— Vai se daná seu bicha. Tô cansado de trabalhar nesse boteco.
O chefe direto e gerente do supermercado — seu Almeida — olhava horrorizado para a discussão.
— Ah, e seu Almeida? — chamou Cabeça tornando a olhar para a dupla de chefes. Almeida estava certo de uma retratação. 

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