Infernal


Eu sou um cara do bem sempre que posso, mas quando alguém me sacaneia eu dou o troco. Foda-se a misericórdia e toda essa besteirada de centro espírita. Eu quero é sossego e diversão. A piada é que a noite em questão deveria ser assim: boa...
Saí com minha digníssima — que também não é flor que se cheire — para uma reunião com uns conhecidos. Eu, apesar de ser um filho da mãe às vezes, participo de umas entidades por aí que tentam ajudar caras mais fodidos que a gente só pra nos sentirmos por cima da carne seca. É isso mesmo. E esse o motivo de caras “finos” se reunirem fora da igreja. De ajudar mesmo, tem bem pouco, mas eles gostam passar por bonzinhos.
Bom, saí com a dona onça toda maquiada pra não fazer feio, rumo a Pindamonhangaba.
Que a cidade era tão maldita quanto o nome, eu já sabia, só não sabia, que as pessoas eram mais malditas que o nome da cidade. Meu humor, pra colaborar, estava pior que o de um cachorro na fila do sabão — logo cedo tive que ajudar minha sogra com uns lances... Coisa física, montagem de móveis, essas merdas que o sexo frágil não gosta de fazer (e o babaca aqui não sabe dizer não).
Acelerando meu carro mais fodido que a minha vida, tomei a estradinha velha pra Pinda.
Estrada terrível, cheia de curvas, com um presídio no meio e um monte de gente feia andando pelos acostamentos. Cara, se você um dia visitar o vale do Paraíba (onde têm muitos paraíbas), não deixe de conhecer a velha estradinha porca de Pinda. Antes, você vai passar por outro buraco chamado Taubaté. Buraco Rules por lá. Passe rápido para não ser contaminado pelo “mal senso” das pessoas, até Monteiro Lobato vazou de lá quando pode. Lugarzinho deprimente, pior que Pinbanagoiaba.
Minha única referencial era a porcaria de um mapa que outro cara chupou do Google e me mandou por e-mail. Claro que o Google inventou uma rota para não precisar dizer que desconhecia o tal endereço. Não contente em inventar a rota, ele inventou nomes de ruas! Cara, se eu pego o fiadaputa que fez o algoritmo do Google Maps mastigo os bagos dele com minha bota, e vai doer. Muito.
Já estava perdido na primeira meia hora em Pinda, mas como todo homem macho e besta, não pedi explicações para ninguém. Continuei queimando alguma gasolina e acelerando. Nessas alturas, a panela começou a esquentar dentro do carro: um Clio ferradaço e cheio de barulho. Podia ser pior, eu sei, mas não pra mim... Eu ando com os ricaços como contei... Mas na real? Sou tipo, um mascote deles, um zero a esquerda que os lembra de tudo o que não devem ser.
Tocava Creedance no rádio e a raiva era tanto que a voz do Fogerty parecia uma puta-gay dando a bunda. O carro cheirava a bunda também, cheirava bunda suada. E mofo. Eu não tenho grana pra mandar lavar o estofamento que já levou de suor pra baixo. Foi quando a minha Pixuruca estressada começou a ratear...
— Pô Dario, custava pegar referência?
— Eu peguei, amor — disse, fingindo paciência.
— Pegou nada.
— Claro que sim, é que o safado que me passou não deu muito detalhe.
— Liga pra ele...
— Nem fodendo, puta falta de consideração do cara passar o endereço errado, quero que ele se foda, não vou ligar e...
— Pode para de drama e pede ajuda no posto, então... — disse a voz da minha consciência (e companhia na cama nos últimos cinco anos).
Evidentemente, só para contrariá-la, parei numa pocilga que vendia lanches antes de encontrar um posto. Sentados, tinha um motoqueiro com olho maconhado e um véio com o dente amarelo de quem chupa cigarro em vez de fumar. Do lado de dentro uma mocinha com banha sobrando na pelves se perdia na nuvem de calabresa.
— Boa noite. — Eu disse mentindo. Minha noite estava uma bosta e eu não desejava que ficasse boa pra ninguém, queria mais é que algum soviético doido testasse uma bomba de quarenta anos em cima da gente. Nem ligaria de morrer perto dos três fedidos. O pior no trailer from hell dos lanches, provavelmente era eu...
Pra não dizer que ninguém respondeu meu cumprimento, o motoqueiro maconheiro deu uma baixada de queixo. Saquei o endereço escondendo que era do Google para não parecer mais idiota ainda e perguntei:
— Sabem onde fica a Avenida Geraldo Alckmin?
Foi como se eu tivesse pedido o endereço de satanás. Ficaram com aquela expressão de bêbado que perdeu a casa sem responder nada. Por fim o véio seco respondeu:
— Não tem nenhuma rua com esse nome.
— Guimarães Nobrega? — completei com a segunda referência de rua que eu tinha. Depois da mesma, o maconheiro fantasma disse “piorô, parça”.
Desestimulado e querendo rasgar meu próprio rabo já ia voltando pro carro. Foi quando a coisinha gorda cheirando calabresa me chamou.
— Deve ser a rua da fazenda do Alckmin...
— E ele tem fazenda aqui em Pinda? — perguntei. Achei que o cara ia pelo menos disfarçar que roubava.
— O bicho é cara de pau, rouba e aplica aqui mesmo.
— Sem novidade — eu disse, depois tornei a perguntar pelo endereço.
A mocinha com marcas de suor nos sovacos se esforçou tanto que eu cheguei a acreditar que ela dizia a verdade. Fez um mapinha e tudo, colocou referências, só faltou assinar, registrar firma e reconhecer no cartório. Eu agradeci e me despedi dos outros dois indigestos, com um sorriso que dizia: “Tá vendo? Uma gordinha fritando calabresa sabe mais que vocês”. Acho que eles perceberam, o véio deu uma cuspida no chão e o maconheiro nem respondeu. Cheguei vitorioso no carro deixando a onça mais calma.
Daria tudo certo.
Ledo engano...
Rodei mais quarenta minutos e tudo o que vi foi mato, gente feia e asfalto esburacado. Estávamos além da faixa de gaza, amigo. Naquela situação que todo homem bom dá o braço a torcer e liga pedindo ajuda pra outro. Mas quem disse que eu sou um homem bom?
— A gente tá perdido, Dario!
— Tá nada, daqui a pouco o nome da rua aparece.
— Daqui a pouco a gente chega em Campos do Jordão, pô!
— E daí? Cê não vive me enchendo o saco pra ir? A gente toma um vinhozinho, desviar das bostas dos cachorros das madames...
— Credo, que mau humor.
Ela calou a boca depois disso, tipo: “não vou dizer o quão babaca você é”. Melhor pra ela. Senão voltaria andando pra casa, sendo assediada pelo povo da areia que mora dentro da terra e sai à noite.
Falando nisso, saca aquele momento que você tem certeza que caiu num episódio do Além da Imaginação? Eu eu estava bem aí. Fogerty cantando Midnight Especial, casas ruindo ao lado da estrada, uma mulher gostosa me torrando a paciência com toda a razão e um carro que afogaria só pra me irritar. É, man... Eu estava fodido e a mercê do acaso.
— Para naquele posto ali, ó — disse a dona da minha coleira apontando para um posto de gasolina que vendia mijo com corante.
.
— Os caras não sabem nem que moram no estado de São Paulo, bebê... Olha o naipe dos elementos — argumentei, possivelmente com razão. Mas minha jaguatirica cruzou os braços daquele jeito que eu sei envolver perda de sexo. Liguei a seta miseravelmente puto e parei no tal posto.
— Boa noite — disse educadamente de novo. — Podem me ajudar?
Como ninguém disse nada, perguntei pela rua com o nome do governador que diz trabalhar pra caralho.
As duas caricaturas com macacão cinza eram um homem de uns sessenta anos com cara de sujo e um negro. O negro era bem negro mesmo, até bonito de ver. Mas era só na aparência mesmo que o desgraçado valeria alguma atenção. Quem me deu atenção primeiro foi o Zé Sujeira.
— Eu não conheço essa rua.
— Fica depois do prédio da antiga fábrica da Coca-Cola, uma mocinha falou pra mim lá atrás — eu disse.
Zé Sujeira olhou para o rapazinho negro que devolveu o olhar num risinho. Sei o que significa, é claro. Que eu era um idiota perdido e que o Zé Sujeira perdia tempo comigo.
— Não sei de Coca-Cola nenhuma — respondeu o Zé, com cara de poucos amigos. O rapazinho pareceu feliz de deixá-lo puto e assumiu a bucha (que era eu).
— Qual é o nome do bairro? —perguntou tentando ver meu papelzinho. Escondi o nome do Google que nessas ocasiões soaria provocação ao enfodidamento dos dois, e notei que não existia bairro ou coisa parecida no papel. Google filho de uma puta... Tinha o CEP, mas eu duvidava que os dois frentistas tivessem o mapa dos correios com eles.
— Deixa pra lá — desisti. Mas o Zé Sujeira ainda tinha uma última carta na manga.
— Ô Pedrosa?! Sabe onde fica a fazenda do Alckmin?
Devia ter sacado que o Pedrosa era outro enviado do azar. Ninguém que veste uma camisa do Sandy e Junior merece respeito. Dentro do carro, depois do embaçado do vidro, minha coisinha quente borbulhava de raiva. E eu do lado de fora. Resolvi poupar muita dor de cabeça e ouvir o Pedrosa.
— Humm, fica uns cinco quilômetros depois da Sabesp — ele disse. Quase chorei.
— O senhor sabe onde fica essa Joça?
— É só ir reto até o final dessa rua aqui — apontou —, depois vira a esquerda, vai até o final da rua de novo, direita, até o final da rua. Nisso você vai gastar uns vinte minutos, depois disso vai chegar na Sabesp. De lá tem “praca” pra Avenida Guimarães Nobrega.
— E essas ruas... Até o final... A rua vai acabar mesmo?
— Vai sim — respondeu o Pedrosa. Pensei ter visto os dois frentistas rindo, mas pode ser impressão minha. Depois de tanto estresse...
Tenho essa tensão com certos tipos. Minha mãe dizia que era excesso de sensibilidade isso de enxergar nas entrelinhas. Eu sentia a faca nas minhas costas disparadas pelos dois frentistas. Os caras estavam felizes da vida em ver alguém “lascado”. Talvez compensasse a vida de merda dos dois. Infelizmente tem muita gente que prefere a desgraça do outro ao seu sucesso. Detesto o tipo. Eu não tenho nada, mas também não tenho inveja de quem tem.
— E aí? Ensinaram? — perguntou Leticia, ligeiramente mais calma.
— Acho que sim, o último cara que tentou ajudar conhecia uma das ruas.
— Que bom, tô ficando com fome.
De novo no carro, em menos de trinta minutos, estávamos completamente perdidos e fora da área conhecida como cidade. E eu levando esculacho da Leticia. E ela ficava ainda mais brava quando estava com fome.
Era uma estrada longa, parecia que nunca acabaria. Nada de Sabesp ou de fim da rua. O desgraçado do Pedrosa nos mandou bem pra porta do inferno. A noite estava escura e dava pra ver bem pouco a olho nu. Agradeci pelos faróis do carro. A vegetação parecia mais seca nos últimos cinco quilômetros. O ponteiro da gasolina ainda estava no meio. Pelo menos isso, pensei. Não ficaríamos a pé.
— Estamos perdidos, Dario. E tudo porque o senhor não pegou o endereço direito...
— Eu peguei, porra! Confiei no cara, achei que o mínimo que ele faria era me passar o endereço certo.
— Você e seus amigos... Era melhor ter ficado em casa.
— Também acho, mas agora estamos fodidos porque a senhora não quis voltar pra casa quando eu pedi.
— Pra quê? Pra você ficar o resto da noite falando asneira por ter perdido a reunião? Eu não queria passar por isso, Dario, e você se conhece.
— Tá querendo dizer o quê?
— Que você não assume quando faz coisa errada, ia dar um jeito de me culpar e... Cuidado!
Puxar o freio de mão foi tudo o que deu pra fazer. Não consegui ver o que era, mas caso não tivesse acertado aquilo, a lataria do Clio lambeu seu corpo. O carro rodopiou com a gente dentro; perigosamente próximo às arvores e mourões da estrada. Uma nuvem de poeira cerrou o ar do lado de fora. Leticia estava com os olhos arregalados e eu sabia que se arrependia por ter discutido comigo e me distraído. Enquanto o carro rodava fiquei satisfeito em poder caceteá-la por isso depois. Logo paramos. Leticia pegou um saquinho de lixo e vomitou um pouco, não era boa sob estresse; nunca fora. Por sorte estava de barriga vazia ou o carro além de bunda mal lavada, cheiraria vômito.
— O que foi aquilo? — perguntou. Ainda tinha algo vomitado grudado no queixo. Eu avisei e ela limpou. Mesmo assim a partir daquele momento quem não queria sexo era eu. Que nojo...
— Não sei; algum animal?
— De pé? Só se fosse um canguru, Dario; e não estamos na Austrália.
A terra suspensa pelo carro não deixava que enxergássemos além de um ou dois metros. Dei partida e claro...
— Que foi?
— Não tá pegando.
— Dario, tira a gente daqui, tô com medo.
— Melhor ver o que era aquilo, pode ser que tenhamos atropelado... não sei... uma criança.
— Droga, Dario! — disse Leticia, impetuosa. Meteu a mão na maçaneta.
O relógio biológico de Leticia pedia um filho há cinco anos, então a possibilidade de fazer mal a uma criança a deixava fora de si. E a mim também, mesmo sendo um bastardo egoísta. Não disse, mas o que eu achei ter visto no meio de um cobertor não era uma criança. Olhos de crianças não brilham como olhos de cavalo.
— Peraí, eu vou até lá — eu disse e desci meio arrependido.
Um corpo envolvido num cobertor estava deitado logo à frente dos faróis. A poeira não me deixava ver se a coisa respirava ou não; achei que não.
— Ei? Tudo bem, aí? Me desculpe mas você apareceu do nada e...
Lentamente a figura se levantou. Media cerca de um metro e vinte e pude ver junto a uma porção de areia empapada num ponto de sua cabeça que algo úmido saía. Sangue.
Que merda, pensei.
— E aí, Dario? Posso descer?
— Não. — Respondi seco. Inseguro. Corri até a criança e virei-a para mim pelos ombrinhos.
Era extremamente pálida, tinha os cabelos quase brancos de tão loiros e os dentes totalmente podres, chegavam a ser pontiagudos de tão corroídos pelas cáries. Estava nua por dentro do cobertor, suja de terra. Era uma garotinha. Mas não tinha olhos de alguém jovem, existia alguma maldade senil e ancestral por trás deles.
— Você tá bem? Te acertei com o carro...
A garotinha não respondeu nada. Vi que Leticia desceu do carro e vinha em nossa direção. Não resolveria pedir que ela me obedecesse, não puta da vida como estava.
— Meu Deus; machucamos você, não foi querida? — perguntou Leticia dando asas ao seu lado maternal. A criança reconheceu isso e tentou sorrir. Seus olhos refletiram a luz dos faróis como a sinalização no meio das rodovias. Incrivelmente eles estavam secos, ela não derramara uma lágrima.
— Eu tô bem, mas vocês precisam ir embora.
— Não podemos te deixar aqui machucada desse jeito. Onde estão o papai e a mamãe — perguntou Leticia.
— Morreram. O papai depois a mamãe.
— E você tá aqui sozinha? Onde você mora?
— Moramos embaixo da terra. Eu e meus amigos. Eles não são como eu; vocês precisam ir.
— Vem com a gente, vamos te ajudar — eu disse.
Como contei, gosto de ajudar as pessoas e no caso da pequena à frente, eu não fazia isso apenas para aparecer. Estava genuinamente preocupado com as consequências do machucado na parte de trás de sua cabeça.
A mão nervosa e insistente de Leticia-Minha-Jaguatirica bateu em meus ombros enquanto eu falava com a pequena.
— Que foi, pô? — perguntei estressado, olhando para ela.
Ali — respondeu com os olhos vidrados. Eu olhei.
A poeira da estrada tinha baixado deixando o ar quase limpo. Os faróis do carro iluminavam muitos metros de noite-escura à frente. Havia dezenas de crianças nuas cobertas apenas por cobertores e outros trapos. Muitos estavam se alimentando, outros prestando atenção na gente. As que comiam chafurdavam dentro de um cavalo, outros de pé comiam partes arrancadas com a boca ensanguentada. A pequena quando viu nossa expressão de horror comentou: “Não gosto de carne de cavalo, prefiro de cachorro”.
Tomei Leticia em meu colo visto que o horror a paralisara. O esquadrão de crianças deu um passo na direção do carro, depois outro e mais um. Não conseguia acertar o buraco da chave que havia sido retirada por Leticia (sempre preocupada com a segurança de termos nosso carro velho e sem seguro roubado). Minha mão tremia vertiginosamente. Leticia a essas alturas desmaiara no banco do carona. As crianças estavam um metro à frente do carro quando consegui dar a partida, logo depois de fechar todos os vidros. Buzinei sem que isso as espantasse. Teria que abrir caminho de outra maneira. Acelerei.
A pequena que eu havia atropelado acenou com um adeusinho. Das crianças ela era a mais bonita. Nas outras faltavam olhos, lábios, cabelos... Uma delas não tinha nariz o que lhe dava uma feição de caveira horrível. Vi que elas estavam com fome demais pra deixar duas refeições de nosso tamanho partir, assim, precisei passar por cima delas. Chorei um pouco quando fiz isso. A cada solavanco que o carro dava. A noite escura depois de cinquenta metros apagou as crianças de meu retrovisor. Eu apaguei-as de minha alma.
Parei em outro posto com cara de abandonado e pedi ajuda. Um vigia aceitando cem dinheiros meus, concordou em me ajudar a limpar a lataria do carro. Leticia dormia. Antes de chegar ao tal posto passei por uma placa de madeira velha escrita: Fazenda Alckmin. Não importava mais. Reuniões, caridade e salvação existem em muitos lugares e em alguns corações, mas passa bem longe da estrada velha de Pinda. Lá tudo o que existe é tristeza, desgraça e fome.
Quando Leticia acordou a convenci que sonhara com tudo. Abri uma cerveja, acendi um cigarro e olhei para a lua. Estava pequena, tímida, mas estava lá. Em algum lugar sei que iluminava criaturas desconhecidas para nós, homens.
Zumbis, fantasmas e crianças que misturavam os três mundos quando saíam para comer. Depois voltavam a se esconder onde faziam morada.
Bem debaixo de nossos pés.

















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