Cavalo Bravo




Eu realmente não acredito que o que vou contar receba um mínimo de credibilidade, também não me importo com isso. Entre os muitos adjetivos indigestos que me acompanham; arrogante ou mesmo débil mental estão entre os mais confortáveis. Também não tenho esperanças que alguém compreenda perfeitamente o que vou expor abaixo, apenas leiam e tirem suas conclusões.
Sempre procurei ser um homem de fé (seja lá o que isso signifique) até o dia em que meu bom senhor começou a me dar as costas. Eu tinha meus defeitos como assistir pornografia enquanto minha mulher dormia, dar umas bicudas quando o cachorro me chateava, levar ele pra se aliviar na calçada do velho Matias que achava que era o dono da cidade, mas realmente não acho que isso seja motivo pra Deus, nosso senhor, limpar os pés em cima de mim, não mesmo.
Na noite de dois de agosto de setenta e sete eu devo ter tido a pior das crises de hemorroidas pra alguém que nunca deu a bunda. É. Eu falo palavrão também e ninguém vai me tirar esse direito. Pelo menos a boca ainda é minha. Como eu dizia parecia que estava com um molusco enfiado em minha bunda tentando pular pra fora, coçando no meu rego. Imagina só minha raiva meu amigo... Trabalhava em uma agência bancária na época. Em setenta e sete a vida era outra e a gente podia tratar funcionário feito o animal que era. Direito era só o contrário de esquerdo e pronto. Se você fosse reclamar que foi demitido com algum juiz o melhor que iria acontecer era ser chamado de incompetente, mas quase sempre mandavam você pra puta que pariu. Você tinha o direito de obedecer seu chefe e agradecer a ele por encher de comida seu prato, isso sim.
Nesse ano, com meu rabo em prantos, Deus me deu outra piada de mau gosto: meu filho. Minha mulher adorou como adorava a qualquer merda inclusive a mim. Saiu animada contanto pra família inteira enquanto eu pensava em dar bom uso ao trinta e três que guardava na bolsa. Naquele tempo um homem ainda podia se armar e craque era coisa de futebol... Pensando bem até que é engraçado isso: no futebol craque virou droga e na rua droga virou craque; que bosta de pensamento, mas vamos à história, você deve estar curioso sobre um velho babaca como eu querendo escrever alguma coisa. Não te contei minha idade... Tenho sessenta e seis. Às vezes acho que nesse ano falta somente mais um seis para eu me tornar uma besta completa, quem sabe em junho, hã? Isso me lembra do que eu estava te contando; do velho. O que eu quero dizer é que eu estava naquele ano à beira da depressão. Tentei fazer de tudo um pouco na vida até chegar a entrar para o sistema bancário e acredite em mim que eu não agradecia por estar ali. O dinheiro era curto, minha mulher me tratava como um idiota (ou um banco de esperma), a família dela me achava um imbecil e minhas posses eram: um fusca velho e cheio de massa e um talão de dívidas (que eu escondia do banco para não perder o emprego). Todo santo domingo eu ia na missa pedir alguma ajuda para o divino, quem sabe? Se Deus ouvia até a bandidagem que vez ou outra se safava da polícia por que não me ouviria?
Foi na manhã que eu soube que meu esperma gerou algo mais que comida de barata no ralo que o tal velho veio falar comigo. Eu estava em minha mesa no banco gemendo baixinho com minha bunda exigente por uma pomada anestésica. Além de tudo estava assado. Não dava pra limpar direito com uma cabeça de tartaruga pra fora.
— Bom dia — ele disse com a cara de pau que os vendedores têm. Achei mesmo que ele era alguma porra de vendedor.
“Bom dia? Só se você trocar de cu comigo parceiro”.
— Bom dia — respondi com a boa vontade possível. Minha boca se esticou tentando formar um sorriso. A gente era obrigado a mostrar os dentes no banco; como um cavalo. Ninguém deixaria sua grana em um lugar onde era mal tratado. A gente dava café, pãozinho, abraços e tapinhas nas costas. Só não dava o cu mesmo... Pelo menos eu. Não o meu que parecia um formigueiro de saúva. As garotas recém-contratadas faziam isso, mas a coisa era muito velada; serviço interno. De qualquer maneira eu nunca gostei de mulher no trabalho.
O tal velho se vestia bem, isso eu não podia negar. Estava com um terno chumbo, gravata, camisa branca engomada, calça com vinco. Quando ele sentou à minha frente pensei até que pudesse ser algum diretor regional disfarçado. Talvez tivesse sido melhor... Um emprego não é nada parceiro, não é bosta nenhuma não importa o que digam pra você. Um emprego é algo que faz você deixar de ser livre, e um homem precisa ser livre pra ser chamado de homem. Pelo menos é assim que eu penso. Mas não naquela época com meu cu estropiado.
— Em que posso ajudar senhor? — perguntei com toda educação possível seguindo os protocolos de abordagem bancários. Me acomodei de um jeito que a coisa querendo sair de minha bunda ficasse quieta e um pouco nervoso dei alguma atenção ao sujeito. Afinal ele estava de terno e naquela cidadezinha quente qualquer um que se propusesse a colocar a porra de um terno ou era louco ou importante. Minha camisa mostrava debaixo do sovaco como eu dizia a verdade. Duas rodelas escuras e uma do tamanho de São Paulo nas costas. O homem não transpirava uma gota sequer, como se estivesse acostumado com um calor daqueles. Como se isso fosse possível.
Aquele ano fez o calor mais fodido desde o meu tempo de criança. Acho que desde sempre. A gente acordava, tomava banho e saía do chuveiro pior do que entrou e eu tenho essa coisa com o suor entende? Eu transpiro como um sapo no sal. É uma coisa terrível, ainda mais com a dor no “você sabe onde” que eu sentia. Vou tentar parar de falar cu um pouco. Mas não garanto nada. Um velho como eu, não tem condição de garantir nem mesmo uma trepada com a mulher, o que dirá controlar velhas manias, entende?
— Na realidade Lucio, quem quer te ajudar sou eu — disse o estranho de terno.
Achei uma cara de pau do cacete o cara chegar ali, na minha agência bancária (quase minha já que eu ainda era subgerente), de frente para a minha cara e meu bigode que mais parecia uma vassoura e querer me oferecer ajuda. E ele falou sério. O velho tinha os olhos mais pretos que eu já vi, eu pensei que ele não tinha nem essa coisa de pupila e íris, os olhos dele eram duas bolas pretas e só. Não sei o que me deu, talvez fosse dor, ou calor ou ressaca visto que naqueles tempos eu entornava uma garrafa de Whiskie a cada dois dias. Esse era outro conselho útil para bancários: Beba muito pra esquecer todas as filhadaputagens que você faz durante o dia. Eu pelo menos fazia. Perdi a conta das pessoas que eu ferrei para ter alguma ascensão na carreira. Não que tivesse adiantado visto que eu continuava a ser o mesmo pé no cú (puta que pariu, falei cú de novo) de sempre. A gente tirava casa de velhinhas, devolvia cheques de gente com câncer, chantageava funcionários, pagava puta para o patrão e um monte de outras coisas que, pra ser sincero, não me orgulho hoje. O sistema era esse e eu estava com a merda do sistema até a garganta.
Só sei que alguma coisa me fez acreditar no velho. Achei estranho que ele soubesse meu nome, mas na cidadezinha chamada Gerônimo Valente todo mundo sabia de tudo...
— Bem, — eu falei sorrindo — se quer mesmo me ajudar preciso que faça um grande depósito. Metas — continuei eu sorrindo com meus dentes amarelados de Marlboro. O velho me estendeu uma valise pesada. Pensei que fosse uma arma. Meu órgão sensibilizado mordeu forte quando pensei no assalto. Essa coisa de assalto a banco sempre foi moda, mas em setenta e sete a coisa parecia uma praga. Todas as cidades da minha região tinham sido assaltadas e eu sendo o cara mais cagão do mundo consegui evitar convocando a policia local em troca de alguns talões de cheque. E que Deus salve os talões de cheque. Tinham até estuprado a esposa de um gerente da cidade vizinha, nada que aquele filho da puta arrogante não merecesse, aliás. Fiquei com pena da mulher dele, mas nessa coisa de estupro quem leva a maior parte da pica é sempre o marido. Qualquer homem nesse mundo trocaria de lugar com a mulher. Ter uma mulher estuprada deve ser foda, entende? Eu fiz o que pude a acabei me salvando. Pelo menos até ali.
— É melhor o senhor guardar isso — eu disse ao velho. Ele continuou com a mesma expressão. Como um mágico que vai tirar um jacaré da cartola.

— Aqui está o que me pediu Lúcio.
Eu fiquei curioso e abri a porra da valise.
Eu nunca tinha visto tanto dinheiro fora do cofre na vida. Devia ter ali coisa de um milhão pra mais em dinheiro atual. Se conseguisse a grana do velho teria minha promoção pra gerente rapidinho e nem me importei de onde saiu aquele velho com cara de doido que não transpirava. Eu só queria a grana. A grana e a meta e provar pra todos os gerentes diplomados que eu não era um ignorante idiota por não ter um diploma de faculdade. Talvez fosse idiota em um monte de coisas, mas não no banco. Ali eu seria importante e o velho como prometido me ajudou nisso.

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